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REMINISCÊNCIAS

O ideal esvanecido

Há mais de meio século ultrapassado, quando ainda adolescente, vivia nossa Pátria tempos de transformação política social, remanescente do pós-guerra mundial. Parte da população almejando transformações formava grupos que tinham aspirações similares. Em destaque facções de esquerda, de direita: umas defendendo o trabalho, melhor divisão da fortuna; outras o capital, agregador de fortuna.
De origem de família católica, tive sempre como norte os ensinamentos cristãos, cujas maiores premissas eram a de partilhar o pão, de amar o próximo como a si mesmo. A igualdade de todos era a retórica, objetivo a ser alcançado: quanto mais iguais, mais felizes todos seriam. Os ensinamentos primordiais da pessoa formam os pilares do caráter e, salvo raras exceções, são os sustentáculos para toda a vida.
Comecei, então, a participar de grupo que tinha como objetivo a igualdade da massa popular. As reuniões para estudos eram constantes e a presença dos participantes do grupo era assídua, positiva, proveitosa. Todos realizavam estudos, pesquisas, tendo como alvo novo sistema social que fosse justo, participativo, solidário, igualitário.
E lá estavam os fundamentos cristãos apregoados pela Igreja, defendidos até as últimas instâncias. Líderes mundiais como Karl Marx. Emile Durkheim, Max Weber, Mao Tse Tung, Lenin, Che Guevara, Fidel Castro, John Kenedy, etc., os seus pensamentos serviam de base às pesquisas. O comunismo, o socialismo, o capitalismo, o fascismo, eram regimes implantados à época e que não satisfaziam o grupo; algo mais era procurado: repartir o pão, igualitariamente, de forma solidária. Era muita a pretensão.
A turbulência do sistema do pós-guerra elegeu o “Homem da Vassoura” (Jânio Quadros) que prometia varrer a corrupção que grassava no país e que se manteve no governo apenas sete meses, tentando golpe de Estado, renunciou e assumiu o governo o Vice-Presidente então eleito João Goulart. Jango como era, carinhosamente, chamado, que tinha orientação política de “partir o pão” solidariamente, após iniciar a reforma agrária, promover Justiça Social concedendo aumentos ao salário mínimo, aos ferroviários, aos funcionários públicos, greves de classes sociais espocaram em todo o país que abalaram, minaram as bases do governo, levando a ser realizado novo golpe de Estado, tendo sido instalada Ditadura Militar que permaneceu por mais de uma geração, que sacrificando os menos favorecidos, avantajava as classes sociais dominantes, aqueles que possuíam melhores condições, os mais ricos.
A revolução instalada pelo golpe em 1.° de abril de 1964, apoiada inclusive pela Igreja Católica, tinha como slogan “Deus, família e propriedade” e o movimento para derrubar o governo foi de cima para baixo, das classes dominantes em detrimento dos menos favorecidos, surpreendam-se…
Não é difícil compreender o contra senso: os ensinamentos de partilhar justa, participativa, solidária, igualitariamente o “pão” com o inverso do sistema aplicado ao país com o maior número de católicos.
A partilha do pão na forma proposta por Cristo pensada foi um ideal esvanecido pela avareza de alguns em detrimento de muitos.

15 de dezembro de 2020 – Irapuan Caesar Costa

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REMINISCÊNCIAS

A viagem

Os fatos a seguir relatados ocorreram por volta da década de 1970, tempo ainda quando estava trabalhando na R.F.F.S.A. lotado no Departamento de Material em Curitiba. Semanalmente, às sextas-feiras à noite, embarcava no ônibus das 19:00 horas da empresa Estrela Azul em Curitiba para União da Vitória e retornava no das 07:00 horas nas segundas-feiras. Por mais de ano essa foi a cansativa rotina até que finalmente fui transferido para trabalhar no já extinto Almoxarifado da Rede em Porto União/União da Vitória.
A rotina que era do conhecimento dos funcionários da empresa Estrela Azul lotados na Agência de União da Vitória, motoristas e cobradores, me concedia privilégios mesmo sem reinvindicações, porquanto todos com o passar do tempo desenvolvemos sentimento de amizade que ainda permanece com os poucos remanescentes daqueles dias venturosos.
Conhecedora das minhas preferências, a responsável pela venda dos bilhetes de passagens da empresa, reservava a poltrona 05 (segunda fileira de poltronas, no corredor do veículo) nas segundas-feiras sem necessidade de solicitação, apenas porque tinha a certeza que iria viajar.
Foi numa segunda-feira do mês de junho, frio e chuvoso, retornando a Curitiba que tive experiência inusitada, ensinamento que guardo nas lembranças memoriais e serviram para me situar no devido lugar que devo ocupar nesse mundo de humanos dos quais nada de melhor, de maior, de privilegiado, devo pretender. Sou apenas mais um, igual a todos, nem mais, nem menos.

Fustigado pela garoa fina e fria que insistia em acontecer nos invernos em União da Vitória, manhã fria, desguarnecido de proteção da chuva, sigo andando ligeiro para a Rodoviária para, novamente, embarcar no ônibus e retornar a Curitiba.
Como sempre me dirijo ao guichê da empresa, adquiro a passagem que já estava expedida, me dirijo ao veículo, certo que a poltrona 05 estava reservada, desnecessário conferir o bilhete adquirido. Adentro ao veículo, a poltrona 06 ocupada por homem moço que imediatamente constatei que era muito reservado, nenhuma importância me concedeu, fato surpreendente.
Acomodo-me na poltrona depois de ajeitar a bagagem que trazia no maleiro correspondente. Sentado, cumprimento o companheiro – “bom dia!” Mal ouço a resposta balbuciada, nada mais.
Os demais passageiros se colocam nos lugares próprios, dada a partida percorre o veículo vias rumo ao destino; partindo da rodoviária situada na Praça Getúlio Vargas (atual Alvir Riesemberg), segue à rua Ipiranga, alcança rapidamente a Avenida Manoel Ribas, a Ponte “Nova”, e a rodovia macadamizada com destino a Luzia, a Rondinha, a São Mateus, a Curitiba…
Trafega o veículo normalmente pilotado com maestria por piloto experiente, competente, com segurança em via macadamizada, molhada, decorrente das chuvas, característica regional de inverno.
O avanço dificultoso do veículo que trafega sacolejando, a lotação do ônibus, o ar viciado das janelas fechadas que impregna o ambiente corrobora com o desconforto da conhecida viagem.
… e o companheiro de viagem permanece quieto, impassível, impessoal, voltado a frente, sem tomar conhecimento de minha presença, impossível de observar a expressão facial.
Os quilômetros da rodovia vão sendo superados, a estrada continua mal conservada, o ônibus sacoleja, trepida, o ambiente cada vez mais poluído agora acrescido de fumaça de cigarros de muitos passageiros. É sofrível o ambiente, verdadeiro calvário. A meu lado permanece o companheiro de viagem impassível, impessoal, circunspecto em suas emoções, voltado para si sem se importar com os demais viajantes, em especial comigo. Uma rocha impenetrável.
Custosamente o veículo vence os obstáculos, avizinhasse a reta de São Mateus, ultrapassada a ponte do rio Potinga, esperança de chegar ao Ponto de Café em São Mateus, início da via asfaltada, certeza da melhoria das condições de viagem. E durante todo tempo o companheiro de viagem continua impassível, impessoal, ausente como se nada o afetasse, ignorando a tudo e a todos. Quem sabe se imagina melhor, superior a tudo e a todos, intocável.
Custosamente o ônibus chega a Rodoviária de São Mateus, chegado o momento do desembarque, todos com muita pressa, ansiosos, menos o companheiro. Observo que, estacionado o veículo no local de desembarque, saca da bolsa que estava debaixo do assento, pacote de leite, copo plástico e pão recheado. Vejo-o com os dentes, rasgar o canto do pacote de leite e com dificuldade transferir o líquido ao copo, saio do veículo. Vejo e descreio que tão impoluta personagem se digne a se sujeitar a ingerir leite de pacote trazido, pão recheado com provável queijo e mortadela, quando pode desembarcar e na Lanchonete da Rodoviária tomar uma boa xícara de bom e quente café com leite, acompanhada de saboroso pastel de carne. Faço juízo nada positivo da pessoa, justifico a impassividade, a impessoalidade que se porta, certamente se considera mais e melhor que todos, esse é meu juízo.
A viagem segue, a via asfaltada, ainda nova, incólume, o trânsito é rápido, vencidas rapidamente as distâncias logo é alcançada a cidade da Lapa, Contenda, Araucária, avizinha-se Curitiba e o companheiro de viagem ainda continua impessoal, impassível, silente observando o encosto do banco frontal sem se importar com qualquer coisa, atitude de quem está só, único no mundo.
Ultrapassado o bairro do Pinheirinho em Curitiba, alcançada a avenida Silva Jardim, próximo à esquina da rua 24 de Maio, o motorista previamente de acordo com passageiro, estaciona o veículo próximo ao meio fio do passeio público.
O companheiro de viagem que pouco se manifestou durante a viagem, tenta se levantar do assento dizendo: – “Com licença, desço aqui! ” Levanto do assento para dar passagem. Tateando, alcança a bolsa debaixo do banco, se apodera de bengala que ainda eu não havia visto, agradece e se despede – “Obrigado, boa viagem” – balizando-se com o instrumento alcança o passeio público. Observo que no passeio há pessoas aguardando-o.
Surpreso, indignado, extasiado constato que aquele que julguei impessoal, impassível, intangível, soberbo, mais e melhor que todos, não era mais do que um jovem cego que solitariamente viajava submisso a todas as dificuldades, as agruras que a cegueira impõe. Nada de impessoalidade, impassividade, inatingibilidade, apenas incompreensão, ignorância, ausência de empatia, de resiliência cercou o companheiro de viagem.
Afinal o ônibus estaciona na Rodoviária de Curitiba. Fim da viagem, começo de nova vida, promessa de não promover julgamento de outrem, de maior respeito a todos, de desenvolver mais e melhor empatia e resiliência.

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REMINISCÊNCIAS

Retorno ao passado

O passado que somente existe em nossas lembranças, é fonte geradora de todos os tipos e formas de emoções. Umas mais fortes, outras nem tanto, todas certamente bulindo com o emocional.
O dia está findo, a tarde se esvai inexoravelmente, a noite se aproxima vagarosamente, sem pressa, certa do inevitável eventual amanhecer.
Vejo à beira do infinito a sucessão dos fatos como ordenada consequência de acontecimentos, uns derivados de outros, todos determinados ou autorizados, por ser maior.
E, quando apreciando o presente, sentindo o sabor do passado, tenho claro que o futuro não é mais do que a soma dos atos e fatos outrora vividos, apenas o resultado consequente de decisões tomadas e que no presente são imutáveis.
Sob essa ótica não há arrependimento por prática ou não, de atitudes que tenham ou não sido tomadas. Todas respondem apenas e tão somente na medida das consequências. Se não houver consequência, não haverá arrependimento.
Entretanto, apesar da materialidade e da composição, tomada em face da existência, responderá independentemente da atitude pelos fatos e atos que produzir. Essa é a lei da probabilidade, quanto mais próxima ao resultado final, mais certa a autoria da consequência.
Os limites do imaginário vão além do certo, chega às raias do impossível, próximos ao gosto da realização dos desejos. Nada se compara à sensação de realização de desejo que, no entanto, por maior que seja a conquista, é efêmera porque substituída por nova de imediato.
O retorno ao passado no desfrute do imaginário, possibilita sentir novamente emoções passadas, quimeras não tão intensas, porém reais. A soma das emoções pessoais determina a estruturação da personalidade do ser, daí a importância de que sejam boas e desfrutadas intensamente.
A lua saúda a morte do dia; bom para uns, nem tanto para outros. O fim do dia, a magnitude do esplendor sempre motiva o despertar de emoções invocando o retorno ao passado.
… que assim seja!!!!

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REMINISCÊNCIAS

A discussão

Tarde quente, ensolarada, própria para consumo de bom chope gelado, brisa fresca, apreciando a paisagem. Sentados à mesa, amigos desfrutam das benesses proporcionadas, o tempo transcorre placidamente, de forma lânguida, preguiçosa. Nada no horizonte que pudesse turbar o estado de espírito amigo, senão a discussão que estava ocorrendo sobre a sociedade em geral, política, depois de ter-se esgotado o de futebol. Dizia alguém:

  • Esse governo é imprestável, roubam, nada produzem, não atende às necessidades da educação, desviam os recursos destinados à saúde, à cultura, é uma lástima! Outro retruca: – Você foi um dos que criticaram o governo anterior, classificando-o de esquerda, que promovia subsídios aos menos favorecidos em detrimento à classe produtora. Terceiro questiona: – Afinal, qual a diferença entre esquerda e direita? Quem sempre perde é o trabalhador, ele nunca desfruta dos ganhos de um ou de outro, e quando há queda da receita, o trabalhador é o responsável; quando há superávit foi o administrador quem obteve o sucesso. Quarto deflagra: – Esquerda, direita é tudo a mesma coisa! De repente estavam os presentes falando alto, quase aos gritos, sem alguma possibilidade de acordo, cada um “puxando a brasa para seu assado”. Certamente deverão estar ainda discutindo, esquerda, direita, centro. Em toda discussão deve necessariamente haver Mediador, sob pena de não se chegar a consenso. Nos dias de hoje há conflitos expressivos e ambas as partes se acham donas da verdade. A Ucrânia alega que a Rússia invadiu, desmotivadamente, seu território; a Rússia afirma que foi a Ucrânia quem descumpriu tratado firmado entre as partes e concedeu independência à Ucrânia, para “engrossar o caldo”, duas províncias ucranianas com aspirações de independências engrossam as fileiras russas. Litigam também os palestinos (grupo Hamas) e os israelenses. Os palestinos alegam que Israel invadiu parte do seu território e estão buscando seus direitos; os israelenses, por sua vez, alegam que tem o direito de se defender e não pretendem a paz, mas o extermínio dos palestinos, isso a grosso modo. Todos se declaram donos da verdade. Como saber quem tem razão, ou não. Não há como afirmar quem ganha o litígio entre os contendores, o que se sabe que os países financiadores são realmente os que irão desfrutar dos lucros. Enquanto eles lutam entre si, desfruto do entardecer, da paz, da cerveja geladinha à sombra do velho cinamomo, apreciando a paisagem…

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