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REMINISCÊNCIAS

Outra pescaria

No início de setembro de alguns anos passados, participei de grupo de pescaria em Ayolas, distrito do Paraguai, às margens do rio Paraná.
Depois de cansativa viagem de aproximados 900 km, chegamos à Pousada de destino, essa à beira do rio Paraná que é imenso, parece mar, não se avista a outra margem, falam estar a aproximados 10 km de distância.
Instalados na Pousada com vistas ao rio que corre ligeiro, saltam ondas resultadas de colisão da água com imensas pedras do fundo, entardecer maravilhoso, espetacular. O sol imenso, avermelhado, parece que mergulha nas águas do rio, deixa rastro de luz avermelhada enquanto que se vai escondendo e a noite chega.
Todos os integrantes do grupo de pesca desconheciam o rio por inteiro, costumeiramente os pescadores contratavam os préstimos de “piloteiros”, profissionais paraguaios dedicados a pilotar embarcações aonde houvesse maiores probabilidades de encontrar peixes, piaparas ou dourados os mais prováveis. As pescarias eram sempre diurnas face aos riscos, jamais a noite, iniciavam às seis horas, terminavam às dezoito.
Na pousada quando chegava grupo de pescadores, costumeiramente o gerente o recebia e recomendava o que poderia ou não praticar, colocava as regras de funcionamento da hospedaria, ofertava serviços de pilotagem, alertava sobre a proibição de pesca à noite, eventuais riscos que poderiam haver. Um dos alertas feito ao nosso grupo na oportunidade foi que pouco rio acima, entre a margem e uma pequena ilha, havia um índio paraguaio que armava material de pesca no local e não deixava que outros pescassem sob pena de formar encrenca. Todos respeitavam, ou quase todos.

Naquele fim de dia, depois de pescaria frustrada, apreciando o magnifico entardecer, entre nós que utilizávamos a mesma embarcação, insatisfeitos com o resultado obtido no dia, durante o jantar, surgiu o fato do índio paraguaio que não deixava que terceiros pescassem no canal onde armava o material de pesca. Ele vivia da pesca, logo sabia onde se encontravam os peixes. A conclusão do raciocínio dos frustrados pescadores foi que poderiam dividir os peixes com o índio, indo pescar à noite, quando ficariam invisíveis e certamente aquele deveria estar dormindo. Pensado, comentado, colocada em prática a malsinada ideia.
Embarcados no bote que portava motor sabe-se lá que marca, com “incríveis” 5 HPs de potência, eu sentado no banco do meio, um companheiro no banco da proa e o idealizador e proprietário do barco no banco da popa, pilotando.
Com muita dificuldade o barco impulsionado pelo motor de 5 HPs vencia lentamente a correnteza desviando as ondulações que denunciavam pedras submersas. Noite clara, céu límpido, estrelado, ainda sem lua. Navegávamos equidistantes das margens do canal; a via láctea refletida na superfície do rio parecia “chão de estrelas”. Nada mais bonito, brisa fresca acariciante, convite para sonhar, tudo perfeito, ausente índio paraguaio e presente a invisibilidade pretendida, imaginávamos. Sobrava a valentia do piloto que, quando alertado do possível ataque do índio paraguaio pescador, soltava bravatas como “capo esse paraguaio com faca sem fio”, “quando voltar vou abrir a buchada do paraguaio” e muitas outras.
Em local de escolha do piloto do barco, distante quiçás 100 metros da costa do rio, lançou a poita e, tracionada pela correnteza enroscou no leito, ficando a popa a montante e a proa a jusante. A via láctea refletida na superfície do rio, sofrendo as nuances das ondulações, parecia manto mágico solto ao vento.
O barco apoitado, iniciados os preparativos para pescaria, molinete, isca no anzol, o piloto em pé na popa do bote, eu sentado no banco do meio de costas para a barranca do rio, o outro companheiro sentado no banco do bico do bote. As bravatas continuavam, quando vindo da barranca do rio, palavreado em alto som, um tanto em espanhol, outro em guarani, imagino, proferido pelo índio pescador, certamente, exigindo a nossa retirada do local.
Em resposta às altercações do índio pescador, fazendo jus às bravatas, respondia:
“- No entendo, no entendo …”
e ria alto e bom som, enquanto continuava na lide do preparo para início da pescaria.
De repente silenciou o índio pescador e as bravatas continuaram, agora com maior vigor ante o silêncio, porquanto aquele deveria ter-se acovardado e retirado da barranca.
Ledo engano. Inesperadamente ouviu-se brado ininteligível do índio, a seguir estampido de tiro de espingarda provavelmente de calibre 12, o som de chuva de chumbo projetados pelo tiro deflagrado, nas águas ligeiras do rio, muito próximo do barco. Som inesquecível, como se fosse lançado um punhado de pedregulhos à água: chuááá…
Acabou-se a valentia, acabaram-se as bravatas! Olho à direita e vejo o companheiro da proa deitado no fundo do bote; olho atrás e vejo tão somente uma nuvem de fumaça do tiro deflagrado; na popa o piloto em desespero tentando sacar a poita que havia enroscado no fundo do rio e gritando:
“Não atire, não atire, já estamos saindo…”
e desesperadamente puxando a corda para acionar o antigo, capenga motor de popa de 05 HPs, para manobrar o barco e desenroscar a poita.
Foram instantes com impressão de séculos. Foram muitos rrrrrrrrrrrrrrs, puf, puf, puf antes do incrível motor finalmente funcionar, manobra feita, poita desenroscada, alçada, retorno ao porto da Pousada. Rio abaixo, impulsionado o barco pelo incrível motor de 05 HPs, foi rápida a volta. Nem a beleza da Via Láctea, nem a da superfície lisa do rio imenso, nem a lua cheia nascente foram capazes de sensibilizar os pescadores fugitivos, restava apenas o desejo ansioso de se afastar do índio, esse era o objetivo maior.
Os demais companheiros de pescaria que a esse tempo já se haviam recolhido ao leito, somente muito mais tarde tiveram conhecimento de parte da aventura e de forma contada glamourosamente com épicos estigmatizados.
Quem sabe se ainda lá está o índio pescador?

18 de dezembro de 2021 – Irapuan Caesar Costa

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REMINISCÊNCIAS

A viagem

Os fatos a seguir relatados ocorreram por volta da década de 1970, tempo ainda quando estava trabalhando na R.F.F.S.A. lotado no Departamento de Material em Curitiba. Semanalmente, às sextas-feiras à noite, embarcava no ônibus das 19:00 horas da empresa Estrela Azul em Curitiba para União da Vitória e retornava no das 07:00 horas nas segundas-feiras. Por mais de ano essa foi a cansativa rotina até que finalmente fui transferido para trabalhar no já extinto Almoxarifado da Rede em Porto União/União da Vitória.
A rotina que era do conhecimento dos funcionários da empresa Estrela Azul lotados na Agência de União da Vitória, motoristas e cobradores, me concedia privilégios mesmo sem reinvindicações, porquanto todos com o passar do tempo desenvolvemos sentimento de amizade que ainda permanece com os poucos remanescentes daqueles dias venturosos.
Conhecedora das minhas preferências, a responsável pela venda dos bilhetes de passagens da empresa, reservava a poltrona 05 (segunda fileira de poltronas, no corredor do veículo) nas segundas-feiras sem necessidade de solicitação, apenas porque tinha a certeza que iria viajar.
Foi numa segunda-feira do mês de junho, frio e chuvoso, retornando a Curitiba que tive experiência inusitada, ensinamento que guardo nas lembranças memoriais e serviram para me situar no devido lugar que devo ocupar nesse mundo de humanos dos quais nada de melhor, de maior, de privilegiado, devo pretender. Sou apenas mais um, igual a todos, nem mais, nem menos.

Fustigado pela garoa fina e fria que insistia em acontecer nos invernos em União da Vitória, manhã fria, desguarnecido de proteção da chuva, sigo andando ligeiro para a Rodoviária para, novamente, embarcar no ônibus e retornar a Curitiba.
Como sempre me dirijo ao guichê da empresa, adquiro a passagem que já estava expedida, me dirijo ao veículo, certo que a poltrona 05 estava reservada, desnecessário conferir o bilhete adquirido. Adentro ao veículo, a poltrona 06 ocupada por homem moço que imediatamente constatei que era muito reservado, nenhuma importância me concedeu, fato surpreendente.
Acomodo-me na poltrona depois de ajeitar a bagagem que trazia no maleiro correspondente. Sentado, cumprimento o companheiro – “bom dia!” Mal ouço a resposta balbuciada, nada mais.
Os demais passageiros se colocam nos lugares próprios, dada a partida percorre o veículo vias rumo ao destino; partindo da rodoviária situada na Praça Getúlio Vargas (atual Alvir Riesemberg), segue à rua Ipiranga, alcança rapidamente a Avenida Manoel Ribas, a Ponte “Nova”, e a rodovia macadamizada com destino a Luzia, a Rondinha, a São Mateus, a Curitiba…
Trafega o veículo normalmente pilotado com maestria por piloto experiente, competente, com segurança em via macadamizada, molhada, decorrente das chuvas, característica regional de inverno.
O avanço dificultoso do veículo que trafega sacolejando, a lotação do ônibus, o ar viciado das janelas fechadas que impregna o ambiente corrobora com o desconforto da conhecida viagem.
… e o companheiro de viagem permanece quieto, impassível, impessoal, voltado a frente, sem tomar conhecimento de minha presença, impossível de observar a expressão facial.
Os quilômetros da rodovia vão sendo superados, a estrada continua mal conservada, o ônibus sacoleja, trepida, o ambiente cada vez mais poluído agora acrescido de fumaça de cigarros de muitos passageiros. É sofrível o ambiente, verdadeiro calvário. A meu lado permanece o companheiro de viagem impassível, impessoal, circunspecto em suas emoções, voltado para si sem se importar com os demais viajantes, em especial comigo. Uma rocha impenetrável.
Custosamente o veículo vence os obstáculos, avizinhasse a reta de São Mateus, ultrapassada a ponte do rio Potinga, esperança de chegar ao Ponto de Café em São Mateus, início da via asfaltada, certeza da melhoria das condições de viagem. E durante todo tempo o companheiro de viagem continua impassível, impessoal, ausente como se nada o afetasse, ignorando a tudo e a todos. Quem sabe se imagina melhor, superior a tudo e a todos, intocável.
Custosamente o ônibus chega a Rodoviária de São Mateus, chegado o momento do desembarque, todos com muita pressa, ansiosos, menos o companheiro. Observo que, estacionado o veículo no local de desembarque, saca da bolsa que estava debaixo do assento, pacote de leite, copo plástico e pão recheado. Vejo-o com os dentes, rasgar o canto do pacote de leite e com dificuldade transferir o líquido ao copo, saio do veículo. Vejo e descreio que tão impoluta personagem se digne a se sujeitar a ingerir leite de pacote trazido, pão recheado com provável queijo e mortadela, quando pode desembarcar e na Lanchonete da Rodoviária tomar uma boa xícara de bom e quente café com leite, acompanhada de saboroso pastel de carne. Faço juízo nada positivo da pessoa, justifico a impassividade, a impessoalidade que se porta, certamente se considera mais e melhor que todos, esse é meu juízo.
A viagem segue, a via asfaltada, ainda nova, incólume, o trânsito é rápido, vencidas rapidamente as distâncias logo é alcançada a cidade da Lapa, Contenda, Araucária, avizinha-se Curitiba e o companheiro de viagem ainda continua impessoal, impassível, silente observando o encosto do banco frontal sem se importar com qualquer coisa, atitude de quem está só, único no mundo.
Ultrapassado o bairro do Pinheirinho em Curitiba, alcançada a avenida Silva Jardim, próximo à esquina da rua 24 de Maio, o motorista previamente de acordo com passageiro, estaciona o veículo próximo ao meio fio do passeio público.
O companheiro de viagem que pouco se manifestou durante a viagem, tenta se levantar do assento dizendo: – “Com licença, desço aqui! ” Levanto do assento para dar passagem. Tateando, alcança a bolsa debaixo do banco, se apodera de bengala que ainda eu não havia visto, agradece e se despede – “Obrigado, boa viagem” – balizando-se com o instrumento alcança o passeio público. Observo que no passeio há pessoas aguardando-o.
Surpreso, indignado, extasiado constato que aquele que julguei impessoal, impassível, intangível, soberbo, mais e melhor que todos, não era mais do que um jovem cego que solitariamente viajava submisso a todas as dificuldades, as agruras que a cegueira impõe. Nada de impessoalidade, impassividade, inatingibilidade, apenas incompreensão, ignorância, ausência de empatia, de resiliência cercou o companheiro de viagem.
Afinal o ônibus estaciona na Rodoviária de Curitiba. Fim da viagem, começo de nova vida, promessa de não promover julgamento de outrem, de maior respeito a todos, de desenvolver mais e melhor empatia e resiliência.

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REMINISCÊNCIAS

Retorno ao passado

O passado que somente existe em nossas lembranças, é fonte geradora de todos os tipos e formas de emoções. Umas mais fortes, outras nem tanto, todas certamente bulindo com o emocional.
O dia está findo, a tarde se esvai inexoravelmente, a noite se aproxima vagarosamente, sem pressa, certa do inevitável eventual amanhecer.
Vejo à beira do infinito a sucessão dos fatos como ordenada consequência de acontecimentos, uns derivados de outros, todos determinados ou autorizados, por ser maior.
E, quando apreciando o presente, sentindo o sabor do passado, tenho claro que o futuro não é mais do que a soma dos atos e fatos outrora vividos, apenas o resultado consequente de decisões tomadas e que no presente são imutáveis.
Sob essa ótica não há arrependimento por prática ou não, de atitudes que tenham ou não sido tomadas. Todas respondem apenas e tão somente na medida das consequências. Se não houver consequência, não haverá arrependimento.
Entretanto, apesar da materialidade e da composição, tomada em face da existência, responderá independentemente da atitude pelos fatos e atos que produzir. Essa é a lei da probabilidade, quanto mais próxima ao resultado final, mais certa a autoria da consequência.
Os limites do imaginário vão além do certo, chega às raias do impossível, próximos ao gosto da realização dos desejos. Nada se compara à sensação de realização de desejo que, no entanto, por maior que seja a conquista, é efêmera porque substituída por nova de imediato.
O retorno ao passado no desfrute do imaginário, possibilita sentir novamente emoções passadas, quimeras não tão intensas, porém reais. A soma das emoções pessoais determina a estruturação da personalidade do ser, daí a importância de que sejam boas e desfrutadas intensamente.
A lua saúda a morte do dia; bom para uns, nem tanto para outros. O fim do dia, a magnitude do esplendor sempre motiva o despertar de emoções invocando o retorno ao passado.
… que assim seja!!!!

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REMINISCÊNCIAS

A discussão

Tarde quente, ensolarada, própria para consumo de bom chope gelado, brisa fresca, apreciando a paisagem. Sentados à mesa, amigos desfrutam das benesses proporcionadas, o tempo transcorre placidamente, de forma lânguida, preguiçosa. Nada no horizonte que pudesse turbar o estado de espírito amigo, senão a discussão que estava ocorrendo sobre a sociedade em geral, política, depois de ter-se esgotado o de futebol. Dizia alguém:

  • Esse governo é imprestável, roubam, nada produzem, não atende às necessidades da educação, desviam os recursos destinados à saúde, à cultura, é uma lástima! Outro retruca: – Você foi um dos que criticaram o governo anterior, classificando-o de esquerda, que promovia subsídios aos menos favorecidos em detrimento à classe produtora. Terceiro questiona: – Afinal, qual a diferença entre esquerda e direita? Quem sempre perde é o trabalhador, ele nunca desfruta dos ganhos de um ou de outro, e quando há queda da receita, o trabalhador é o responsável; quando há superávit foi o administrador quem obteve o sucesso. Quarto deflagra: – Esquerda, direita é tudo a mesma coisa! De repente estavam os presentes falando alto, quase aos gritos, sem alguma possibilidade de acordo, cada um “puxando a brasa para seu assado”. Certamente deverão estar ainda discutindo, esquerda, direita, centro. Em toda discussão deve necessariamente haver Mediador, sob pena de não se chegar a consenso. Nos dias de hoje há conflitos expressivos e ambas as partes se acham donas da verdade. A Ucrânia alega que a Rússia invadiu, desmotivadamente, seu território; a Rússia afirma que foi a Ucrânia quem descumpriu tratado firmado entre as partes e concedeu independência à Ucrânia, para “engrossar o caldo”, duas províncias ucranianas com aspirações de independências engrossam as fileiras russas. Litigam também os palestinos (grupo Hamas) e os israelenses. Os palestinos alegam que Israel invadiu parte do seu território e estão buscando seus direitos; os israelenses, por sua vez, alegam que tem o direito de se defender e não pretendem a paz, mas o extermínio dos palestinos, isso a grosso modo. Todos se declaram donos da verdade. Como saber quem tem razão, ou não. Não há como afirmar quem ganha o litígio entre os contendores, o que se sabe que os países financiadores são realmente os que irão desfrutar dos lucros. Enquanto eles lutam entre si, desfruto do entardecer, da paz, da cerveja geladinha à sombra do velho cinamomo, apreciando a paisagem…

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