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LITERATURA

“Que assim os dias”, de Roberto Corrêa dos Santos: A escrita dos espectros ou um livro azul para ressuscitar os vivos

O que escrever sobre um livro que é pura força? Um livro que me inquieta e que me arrasta com ele e para além dele nesses dias tão febris. Um livro sobre a clausura que é também um chamado à abertura, um encontro ainda possível com os outros e com o mundo. Um livro que desenha no vazio uma fresta, um círculo invisível por onde passar alguma luz, mesmo que tênue, de uma alvissareira manhã. Um livro que é o próprio manifestar de uma escrita potente e reveladora. Um livro necessário. Um livro ainda. Um livro a mais em dias que desejam dias mais amenos. Um livro azul sobre o que em nós ainda está vivo. Um livro azul sobre a experiência de nos sabermos mortos ou quase. Um livro vivo sobre esses dias tão mortais. Um livro delicado a nos lembrar que ainda não morremos. Um livro bravo para lutar pela vida. Um livro para lamentar um certo estado das coisas, mas um livro aguerrido, pois que o lamento pode ser o grão vivo de uma próspera transformação, apesar de toda ou qualquer falta de esperança. Um livro que é a prova de sua força. Um livro para abraçar e chorar os mortos. Um livro também para ressuscitar os vivos. Um livro para não deixar morrer o que em nós ainda vive. Um livro para o nosso tempo. Um livro para o próximo. Um livro que é um sopro, um ar, um respiro. Um livro sobre o confinamento de nossos corpos e pensamentos que é também uma flor brotando no chão da sala. Um livro salutar com poemas pulsantes, objetos vivos, que vem de encontro a nós em nossos tão nodosos dias. Sim, um livro vivo, com todas as dores, sangue e suor, pura seiva com que são feitas a vida e a arte. Um livro forte sobre a vida frágil que insiste em pulsar os dias. Dias assim como estes em que a moléstia, surda, invisível e voraz, caminha pelas ruas, dias assim pedem poemas como aqueles que integram o novo livro de Roberto Corrêa dos Santos.
“Que assim os dias”, que acaba de ser lançado pela Cult Editora, reúne textos atravessados pela presença de um tempo singular para todos aqueles que experimentam vivê-lo com perplexidade. Não é como na foto em que o cenário fabricado com tintas coloridas contrasta com o fundo de uma cidade cinza em ruínas. Não, definitivamente não. É um mergulho no estar sendo, no que é agora, como uma flor que brota do chão partido – sua tela embaixo – só que essa se erguendo ao céu e com sua perspectiva ao lado. O poeta sabe o mundo, seu tempo árido e o horror de cada grande onda. Por isso escreve, mergulhado em dias assim (assim os dias!), sem ter para onde ir, sem ter para onde fugir. No entanto, para o poeta elíptico, o livro é essa casa de encontros, um lar onde é impossível estar sozinho, embora a solidão a tudo atravesse. A escrita é também uma morada, assim como a casa é um poema que em dias de confinamento pede para ser escrito e amado.
Penso que o que move o livro de Roberto é uma escrita dos espectros. Há dois sentidos nessa frase. Poderia ser uma escrita “sobre” os espectros, os fantasmas que nos rondam, ou uma escrita produzida “por” espectros, ou que pertence “aos” espectros. Ambos fazem sentido. No poema “Pensamento”, o poeta, depois de desconfiar da própria morte, responde: “Não. Não estou morto, não estou sonhando / não estou nada. Estou escrevendo./ Escrevendo sobre espectros / de coisas que existiram na glória de existirem (…)”. O escritor conjuga a morte em primeira pessoa porque é um ser empático que, mesmo confinado em si mesmo, está em perpétua comunhão com o mundo. Esta é uma entre outras belezas do livro. No poema “O coro pergunta”, ele afirma: “Morrer e saber de alguém morrendo / e saber que a morte cresce em curva alteante / tudo isso mata-nos”. Ou em outro momento: “são assim os sinais de que eu era morto”. No lindo “Desenho e linha”, uma pungente elegia sobre o triste cotidiano na pandemia, o poeta lembra que a morte está livre como “se houvesse apenas viva a terceira moira”, aquela que “corta o elo do passar das histórias”.
Vamos virando as páginas do livro e encontrando a culpa do oxigênio que tudo enferruja, os mendigos que somos desde antes de vermos o mundo, o medo da criança recém-nascida nos dizendo que agora é tarde, a poeira que não morre e reduz a calamidade de luz dos trópicos, o menino morto a tiros que impede o nascimento de um poema, uma criança morta, as sirenes ao longe comunicando que alguém está a morrer, a língua áspera como certas plantas, as xícaras e pétalas de rosa na quente água do real, o homem desorientado que, sem ideias e entorpecido, invade o Oriente, o corpo que nada sabe da criatura asfixiante e desesperada que o habita, o homem que aceita envelhecer, o homem que aceita ser a mulher, o homem que aceita ser o homem, ou as duas coisas ao mesmo tempo, o poema que vem de alguém entubado, de alguém tentando o severo ar possível, o poema entubado, a consciência a nos matar porque alguém está morrendo, a consciência de que a arte não mata a angústia, mas sem ela, sem a arte, a língua morre estrangulada, e todos nós morremos com ela, o pensamento que não venta na catástrofe, a solidão no meio da moléstia e da ruína, uma cantora que abre a varanda e faz voar seu canto operístico, “como se atirasse a fatal beleza no peito da morte”, a arte do concentrar-se que está rota (como escrever ou ler ou ver filmes em dias assim?), a triste feiura das mortes produzidas. E ao perguntar quem fará o poema do terceiro mundo, o poeta vai escrevendo o poema do terceiro mundo.
Em tempos de tanta morte e grande angústia, o livro de Roberto, um livro como esse, sem maquiar a tristeza, nos dá sobrevida, porque sentimos isso tudo com ele. E essa sobrevida é também, querendo ou não, uma forma de esperança. Seu poema é como um ar. Ele entra e sai de nós a cada instante, trazendo mais vida. Com o poema existimos mais, com a poesia respiramos melhor… e resistimos.

31 de julho de 2021 – Caio Moreira

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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