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LITERATURA

Sobre dedicatórias alheias gravadas nos livros usados que compramos

Livros são objetos que contêm e possuem histórias. Para onde voam, em que lares, fazer sua morada depois de editados e vendidos por alguma livraria? Às vezes, passam de mão em mão e vão parar em algum sebo até que um aventureiro os colha de uma prateleira empoeirada, resgatando-os de um limbo silencioso qual museu. Quando adquiro um livro usado, fico a matutar – além de pensar sobre o afeto com que devo regá-lo na beleza da adoção – quem já os leu, quantas mãos folhearam o volume, ou por que os antigos proprietários deixaram de desejá-lo. Cada livro de estória tem a sua história cujo conteúdo nos é vedado. A não ser que surja em meio às primeiras páginas alguma dedicatória a nos falar de um encontro, de um amor, de uma admiração, o que consigna a ideia de que quem dá um livro a alguém o faz com um gesto que transcende o mero presentear. Dar um livro é mais que um regalo, é ofertar uma história.
Como me encanta ler as dedicatórias de alguém que não conheço para alguém que desconheço nas páginas de um livro usado. Quando abro uma edição surrada de Gonçalo Tavares, o livro “O Senhor Swedenborg”, que me chegou pelo correio, descubro que um tal Hugo está indo dormir morrendo de saudade de um tal Grandão. Quem será este, cujo apelido é tão misterioso quanto engraçado? Ali, Hugo se declara para o amado, continuando: “Só vou te ver na quarta. Ainda bem que chega logo! Na quarta-feira, vou te dar este livro. Quando ler isso, olha para minha cara de felicidade! Você me faz feliz! Te adoro!”. Uma certeza: Hugo é uma pessoa romântica. Como Gonçalo Tavares é um grande escritor, o amado soube escolher.

Abro outro livro adquirido em um sebo. É um exemplar de “Comício de Tudo”, do poeta carioca Chacal. É uma daquelas edições que integrou nos anos oitenta a série Cantadas Literárias, da Editora Brasiliense. Descubro no interior da contracapa o texto que um Vitinho escreve para uma Claudinha: “Romário é carioca e você também. As tribos, os tipos, a energia do rio, passeia por essas páginas. Tape o nariz e mergulhe, o rio e as pessoas te amam! Um grande beijo nativo”. O texto tem o cheiro hippie, jovem e malandro dos poemas de Chacal. Vitinho parece ser uma pessoa legal, Claudinha também. Dois malucos belezas. O tom combina com a página manchada e com as pequenas avarias que olhadas de perto revelam a intervenção de alguma traça esperta. São palavras roídas pela matéria memória. Talvez a obra tenha sido uma companheira de viagem para Claudinha em uma Kombi e seus passeios pela serra do Rio de Janeiro, movidas ao som de Blitz e erva.

Mas nem sempre tudo são flores. As dedicatórias, às vezes, vêm cheias de rancor, com a tristeza do abandono ou da incompreensão. Abro uma edição de “As Annamárias”, de Lindolf Bell, adquirida em uma loja de usados. Na primeira página, uma tal Tude escreve para Assis. É mais que uma dedicatória, é uma carta. Longa. Ocupa toda a página. Nela, Tude derrama poeticamente suas lamentações. Diz presentar Assis com a obra, porque sempre se deu a ele. Tude é também o próprio livro: “Sim, eu sou uma obra que ficou dez anos numa prateleira empoeirada e esquecida entre teus outros livros”. O tom é forte. Tude não está para brincadeira. É severa com Assis: “Não quisestes sequer abri-la, quanto mais se deter em valorizá-la”. À medida que escreve, a autora da missiva dá mais ênfase ao protesto: “Conhecer o verdadeiro, o autêntico, a pureza de atitudes e ações não faz o teu gênero”. O que deve ter sentido Assis ao ler a ácida dedicatória em um livro tão doce?: “Preferes ir apanhando o que te aparece mais fácil e mesquinho, fugaz e fútil”. Ao passo que escreve, Tude vai dando ao texto mais informação e personalidade: “Enfim, sei que as palavras são palavras, o que vale para mim são os valores mas como vou ser sempre a velha, a caipira de Blumenau, que fez Letras, por isso repito mais uma vez esta frase que não é minha: Ninguém melhor que o tempo para nos mostrar as razões”.
Surpreso e apreensivo fico me perguntando o que Assis deve ter feito para Tude. Ou melhor, o que deixou de fazer por ela. Antes de terminar a carta, desculpando-se pelo desafeto e agressões, ela arremata: “Por tudo o que não quisestes fazer por mim e para mim, e por tudo o que me fizeste”. A data do texto é de 10 de agosto de 1982. Quase quarenta anos já se passaram. Onde estarão Assis e Tude? O que pensariam em reler a dedicatória tanto tempo depois desse vendaval? O que sentiriam ao saber que espio suas intimidades? O que fazer com a memória dos outros, com as ruínas desse (des)encontro doloroso? Sinto-me como que devassando a janela de uma casa alheia. Talvez a resposta para todas essas perguntas esteja guardada lá no próprio livro, no último poema, onde Bell escreve:
“Amor mais perfeito
não é feito do fácil.
Floresce por dentro
embora se pretenda
que cesse.
E quando nas águas da pressa
foge o amor mais depressa,
é tempo de saber
quanto dura
o tempo de não saber”.
Às vezes, os livros acabam longe de suas próprias histórias. Resta-nos perguntar: Quanto tempo dura essa distância? Quanto tempo dura esse não saber? Na vida, em que prateleira vão parar nossas lembranças?

23 de dezembro de 2021 – Caio Moreira

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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