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LITERATURA

Cícero França, um ilustre desconhecido

Cícero França (1884-1908), figura quase esquecida das nossas letras, foi incluído por Andrade Muricy no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Dos primeiros poetas da região, foi o que mais se projetou no cenário literário brasileiro. Filho de Napoleão Marcondes de França e de Francisca Olímpia Silveira de França, e sobrinho do Coronel Amazonas, o local de seu nascimento é incerto. Alguns biógrafos apontam a Fazendinha (Rosal do Cruzeiro), em Palmas, como sendo o local de seu nascimento. Outros indicam União da Vitória.Como os arquivos do Cartório de União da Vitória anteriores a 1938 foram perdidos, o mistério provavelmente perdurará. Independentemente de sua origem, é certo que a família do poeta viveu em União da Vitória, projetando-se no cenário político e econômico da região. Com base nos poucos relatos biográficos, podemos afirmar que Cícero França possuía um espírito viajante e aventureiro, pois além de morar em União da Vitória, viveu em Curitiba, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.
Por volta de 1900, o jovem foi à Bahia se preparar para a Faculdade de Medicina. Lá, hospedado no Hotel Sul Americano, aproximou-se do grupo simbolista Nova Cruzada.
Em fins de 1901, Cícero vai para São Paulo com a finalidade de se matricular na Faculdade de Direito. Foi morar em um apartamento na rua José Bonifácio. Tratava-se de um quarto “nada consolador”, localizado no andar superior de uma casa importadora de azeite, querosene e bacalhau que davam ao ambiente um cheiro peculiar que desagradava os seus moradores. Nesse momento se intensifica a produção de Cícero.
Raul de Almeida Faria, amigo de Cícero, em seu diário lembra do ritual segundo o qual se submetia o poeta, fumante e bebedor inveterado de café, quando escrevia: “Tinha o meu companheiro de quarto uma graciosa esquisitice: Não escrevia a não ser com as pernas estiradas numa cadeira que, cuidadosamente, punha a certa distância daquela em que se sentava”. Depois de desistirem da Faculdade de Direito, os dois amigos foram para o Rio de Janeiro, em uma pensão. Cícero se aproximou do poeta Emilio de Meneses, participando, assim, do ambiente cultural da belle époque carioca.
O diário de Raul de Almeida Faria apresenta um episódio que demonstra o gênio bondoso de Cícero França:“Um dia chegava a pensão um moço maltrapilho que fez entrega à dona da casa de um bilhete que meu amigo lhe endereçava dando ordem para ser entregue ao portador um terno de roupa já seu usado. Por engano foi-lhe entregue roupa nova, chegada de véspera do alfaiate a quem tinha sido paga com algum sacrifício. Cícero, chegando em casa, ciente do engano, não censurou a precipitação do nosso senhorio: riu-se rematando o fato com essa expressão de bondade: ‘e o manata meteu-se na minha roupa nova'”. Foi nessa época que Cícero, depois de cuidar de um “serenatista” que havia contraído tuberculose, começou a piorar da doença que lhe tiraria a vida. Em Curitiba, muito doente, Cícero organiza o livro de poemas Necrotério D’alma, lançado em 1905, no mesmo ano em que fundou o jornal O Rebate, em União da Vitória.
Necrotério D’Alma é composto por 26 sonetos. Em todos, o tom é cinzento e lúgubre, fazendo lembrar o tipo de melancolia presente em vários poetas simbolistas. É provável que Cícero França seja um dos poetas mais decadentistas do seu tempo. Temas como a morte, a dor e o tédio formam um eixo sob o qual se move uma poesia interessada em imagens como a da sepultura, a da caveira, a da tuberculose, a do cadáver, a das trevas, entre outras.
O primeiro poema do livro, “Entrae”, uma espécie de preâmbulo, é importante para situar o universo da obra. Nele, ela é apresentada como um necrotério. O poeta convida o leitor a entrar sem nojo para mirar e “autopsiar” o cadáver de sua alma. Em “Augural”, Cícero escreve: “Segreda-me uma voz que cedo morrerei”. Como o prenúncio se fez como previsto, o poema acaba por ganhar uma força bastante trágica. Impressionou-nos o fato de termos encontrado um poema psicografado pelo médium Chico Xavier atribuído a Cícero França, um poeta do Vale do Iguaçu. O confronto da linguagem desse texto com os poemas de Necrotério D’Alma demonstra uma semelhança significativa.

Em 1908, bastante debilitado, o poeta decide visitar a família em Porto União, mas morre no Hotel Palermo, na Praça da Matriz, em Ponta Grossa, na noite de 10 de julho, sendo assistido pelo irmão mais novo Vespertino França, responsável pelo seu espólio. O corpo foi transportado para União da Vitória, onde foi cuidado pelos membros da loja maçônica Amor e Caridade. O corpo está sepultado no Cemitério Municipal.
Em um dos inéditos, intitulado “Treze”, o poeta supersticioso confessa ter pavor deste número: “Treze! Azar! Maldição! Parece que estou vendo / sempre que vejo um 13, o meu enterro triste / Seguindo ao Campo-santo em horas de sol posto // e me vem ao pensar, e falo isso tremendo / que ela desfeita em pranto, olhos roxos, assiste / ao meu enterro num treze de agosto”. O escritor não morreu neste dia, mas um estranho fato acompanha o número. A título de curiosidade, dispomos ao lado das letras do alfabeto, de A a Z, um número em ordem crescente, de 1 a 24. Depois de somarmos as letras de seu nome, fragmentando as dezenas finais, encontramos o número 13. Mesmo não acreditando em qualquer significado construído além do mero jogo do acaso, optamos por apresentar o esquema, como que nos surpreendendo com a coincidência:

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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