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LITERATURA

Joaquim Serapião do Nascimento: Poeta

Em União da Vitória, o nome do professor Serapião é associado à escola que leva seu nome. Sabe-se que o poeta nasceu em Iguapé, no Estado de São Paulo, em 1847 e que, ainda jovem, veio para o Paraná, onde abraçou o magistério. Dirigiu o Colégio Nossa Senhora da Luz, em Curitiba, e fundou o Colégio Santana do Iapó, no município de Castro, em 1882. Veio para União da Vitória em 1901, onde lecionou durante vários anos, vindo a falecer em Curitiba, 11 de junho de 1911. Serapião foi também dramaturgo, deixando as seguintes peças de teatro: “13 de Maio”, “O Cocheiro”, “Arte na Roça”, “José do Egito”, “O Nascimento de Jesus”, “O Filho Pródigo”, “O Sr. Aprígio em Apuros”, “A Carta que Dá Dinheiro”, a “Vítima do Jogo” e “Honrarás teu Lar”. Aliás, estas duas últimas, montadas na década de 50 pelo Teatro Experimental do Guaíra e dirigida por nada mais nada menos que Dalton Trevisan.
Fora isso, pouco se sabe sobre sua vida e sua obra. Quem visitar as dependências da escola Serapião do Nascimento não encontrará fotos de seu patrono. E se procurar sua imagem em arquivos públicos, tampouco. Até o momento não há fotografias conhecidas do eminente professor. Sua imagem sobrevive no legado da obra e em um desenho de Dirceu Marés de Souza, provavelmente produzido a partir de descrições, pois quando Dirceu nasceu o poeta já havia morrido. É possível que a imagem tenha sido inspirada nas mesmas descrições apontadas por Alvir Riesemberg, em um texto lido no Clube Apolo, em comemoração ao centenário do Grupo Escolar Professor Serapião, que descreve o mestre: Estatura alta e compleição robusta. O cabelo branco atirado para trás, o bigode torcido em gui fina, o cavanhaque prolongando-se em ponta. Expressão franca, olhar inteligente, gesto largo. Indumentária sóbria e bem cuidada “um ‘croisé de alasticotina emoldurado com a gola de seda o peito engomado da camisa, sobre cuja alvura nitente enlaçava-se a gravata preta”.
A descrição reproduz o depoimento de seus contemporâneos. Dupla condição do fato: Alvir relembra Serapião, mas o que lembra é a lembrança de outros. Difícil saber onde termina a realidade e começa a ficção.
Estamos diante de um mistério. Seria o seu cabelo tão avolumado quanto nos mostra o esboço? Seriam o seu bigode e cavanhaque tão discretos assim? Os traços de Dirceu fazem de seu modelo uma figura semelhante a Trotsky. Não apenas pelo cabelo e cavanhaque, mas também pelo rosto anguloso e olhar profundo e revolucionário. Se o desenho não condiz com a realidade, não importa. A ilustração de Dirceu nos legou um Serapião. Temos uma imagem para o poeta. E ela nos basta. Talvez algum dia uma fotografia apareça. E se a imagem de Serapião for o seu avesso, não faz mal. Teremos a foto em que o poeta é e o desenho onde ele é o que poderia ter sido. Por enquanto, fiquemos com a imagem de poeta e professor revolucionário que já atuava no magistério quando o líder bolchevique nasceu.

Uma outra observação pode nos ajudar a formar uma imagem do poeta-professor. Alvir Riesemberg escreve que um antigo aluno de Serapião o comparou aos Mosqueteiros de Dumas, “não só pela aparência física, mas também pela reação pronta e viva do espírito, sempre segundo a mais bela padronagem moral, em face das solicitações da vida”.

Chama a atenção não apenas a esparsa obra do intelectual, cujos originais em sua maioria foram extraviados, mas principalmente a atitude poética presente na trajetória de Serapião, provavelmente nosso primeiro poeta performático. Há um episódio que ilustra bem esse fato. No dia 26 de novembro de 1906, em comemoração à inauguração da Ponte Ferroviária Machado da Costa, o poeta escreve um famoso poema dedicado à União da Vitória e o espalha pela cidade no grande dia. Aquele era um momento de grande otimismo não só na cidade, mas em todo o mundo, tendo em vista que vivíamos uma época de intensas transformações técnicas e mecânicas. Nesse sentido, “progresso” era uma palavra de ordem que aparecia no poema de Serapião como sintoma de seu tempo.
Vale lembrar que no mesmo ano em que se deu a inauguração da ponte – que para o município simbolizava uma época desenvolvimentista -, Santos Dumont realiza seus voos em Paris com o 14BIS. Em 12 de novembro de 1906, em Bagatelle, duas semanas antes de Serapião escrever o poema, o pai da aviação aprimora sua máquina de voar, realizando com o Oiseau de Proie III o voo que lhe rendeu o Prêmio do Aeroclube da França e o reconhecimento internacional.
Segundo o registro de Alvir Riesemberg, o dia de inauguração da ponte foi magnífico. A cidade decorada com bandeiras e guirlandas comemorava ouvindo a banda de música de João Holmann, que viera de Ponta Grossa especialmente para o evento. Foguetes eram lançados ao céu e, à noite, em uma sessão solene no Clube União, uma “cabocla bonita do jararaca”, a Luíza Amâncio, descalça e toucada de flores, representava União da Vitória: “Diante dela, o Professor Serapião declamou, fremido, o poema que compusera naquele dia”:

Selvagem qual bugre nu:
Banhada pelo Iguaçu,
À beira dele nasceste,
Linda cabocla indolente!
A dormir em mata ingente,
Entre colinas cresceste!
(…)
Eis a cabocla bendita
De pé, no banco da glória!
Cercada de lindas flores,
Ao som de cantos de amores,
Eis a UNIÃO DA VITÓRIA!

É uma pena que o tempo tenha tratado de apagar a obra poética de Serapião. Não encontrei mais do que seis poemas de sua verve: o poema sobre União da Vitória, o poema escrito em 1910, em homenagem a João Gualberto e aos militares do Tiro Rio Branco, depois de serem recebidos como heróis em Curitiba, dois poemas para Amélia, sua esposa, e o outro escrito quando completou sessenta e dois anos de idade que tem como tema uma reflexão sobre a sua vida. Há também um poema sobre a cidade de Morretes.
(texto publicado originalmente no blog www.baudefragmentos.blogspot.com em 2016)

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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