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LITERATURA

A arte de gastar o tempo ou de inventar uma vida para os outros

Vez e outra, na rua, no trabalho, ou em qualquer outro lugar, sem intenções muito claras, me pego pensando na vida das pessoas que me rodeiam. Não necessariamente daquelas que já conheço, que acabam por me despertar pouca curiosidade, porque é fácil e até desinteressante sondar com interesse o que no fundo já sabemos. Refiro-me ao exercício de tatear o mistério da existência dos outros, daqueles que me são completamente estranhos. Ás vezes, basta encontrar alguém que nunca vi e vou logo casando o sujeito com uma vendedora daquela loja de sapatos que fica em frente à praça. Já começo a enxergar seus filhos na creche enquanto o pai e a mãe trabalham. Ele perdeu a avó para a Covid no início da pandemia, quando ainda não havia vacina. A tristeza não fez com que o rapaz perdesse o gosto pelo futebol, esporte praticado religiosamente com os amigos todas as quintas-feiras, antes de uma cervejinha no Bardella, aquele bar e pizzaria que fica perto da Perimetral. E por aí vai. É um trabalho da imaginação cujo controle me foge e cuja teimosia beira quase a esquizofrenia.

Não sou o único a sofrer desse mal. Constatei o fato há alguns anos quando li o romance “Rimas de Vida e Morte”, do escritor israelense Amós Oz. É um belo livro. Nele, um romancista, enquanto se prepara para dar uma palestra no centro cultural de um bairro de Tel Aviv, passa o tempo em um café e ali começa a imaginar uma história para cada indivíduo que vê à sua volta. A bela garçonete que o atende, por exemplo, vira a ex-namorada de um goleiro reserva de um time de futebol. Dois desconhecidos próximos à sua mesa viram mafiosos discutindo a situação de um homem que está morrendo na UTI de um hospital etc. O livro é essa viagem. A literatura é essa máquina da imaginação que promove uma ponte entre o homem e o mundo, entre um ser e outros seres. Tudo pelo viés da imaginação, essa senhora que nos move a vida.
Aliás, já em Aristóteles, a verossimilhança é essencial no caráter imitativo da arte. Para ele, a poesia encerra mais verdade e filosofia que a história justamente porque enquanto a história diz respeito ao que aconteceu, a literatura se refere àquilo que poderia ter acontecido. A arte é da ordem do verossímil. Ao inventar estórias para os outros talvez estejamos ali fazendo uma espécie de literatura, tornando, assim, a vida mais possível ou pelo menos mais suportável. É uma ótima forma de passar o tempo. Aliás, imagino que uma das funções mais importantes da literatura seja exatamente esta: a arte de gastar prazerosamente o tempo. Isso vale para quem escreve tanto quanto para quem lê.
Imagine a cena: estou em uma academia, no Bairro Santa Rosa. Não sou muito dado a exercícios físicos, mas me rendo a eles em troca da perspectiva de uma vida mais longa e feliz. Opto com mais frequência pela esteira devido a uma certa preguiça de manejar aparelhos e pesos. Dali do canto da grande sala, onde está instalada a máquina, tenho uma vista panorâmica do ambiente. Gosto de observar as pessoas de soslaio pelo espelho. E já vou logo imaginando uma vida para aquela senhora que se exercita na bicicleta ergométrica. Na minha fantasia, ela se matriculou na academia depois do seu médico denunciar severamente o alto colesterol. Ou fazia regime e exercícios com regularidade ou morreria em breve. Com medo de não ver os netos crescerem, estava agora ali entregue devotamente à musculação. Seu marido, aposentado, continuava trabalhando, agora como taxista, para melhorar o ordenado e não cair no ócio assassino. Próximos dela, dois jovens conversavam animadamente. O rapaz na cadeira flexora, a moça na cadeira abdutora. Muitos risos e um teor exibicionista na regularidade dos movimentos. Eram como dois pombos que mostravam um ao outro a dança do acasalamento. A namorada dele estava na faculdade terminando o curso de nutrição. O namorado da outra, extremamente ciumento, era filho do dono de uma agropecuária. Cursava veterinária e planejava se casar depois da formatura. Os dois pombos não saíram juntos da academia, mas se encontrariam naquela noite iniciando assim um caso extraconjugal. Um careca de meia idade se olhava no espelho feito um narciso com dois halteres nas mãos. Ele tinha sobrevivido a um acidente e desde então nunca mais dirigiu bêbado. Agora abstêmio, desejava ganhar mais uns quilos de massa muscular. Daqui a uns dois anos morrerá atropelado por uma caminhonete de lavanderia. Não, muito triste, esse final. Não merece terminar assim. Sua simpatia me inspira piedade. Reescrevo a história. Morrerá velho e feliz daqui uns trinta anos casado em segundas núpcias com uma mulher que é justamente a dona da lavanderia.

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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