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COISAS DA BOLA

BASTIDOR “PESADO” DÁ CANECO

Desde menino, um líder dentro das quatro linhas. Por observação e esperteza aquele boleiro-beque já tinha percebido que triunfar em uma contenda, não era simplesmente saber chutar a bola com destino ao arco contrário. Notara ele, que também nos bastidores – na malandragem e na simpatia teria mais meios de se chegar a uma vitória dentro do tapete verde. Sempre falante, pela liderança carregava a braçadeira de capitão. Procurando orientar a sua turma de esquadrão, também fazia de tudo para ganhar a confiança do mediador. Elogiava-o, e nos questionamentos, com um sorriso na feição tratava o homem de preto com muito respeito e educação. Pela rodagem dentro do futebol neste pais-continente, ele era conhecido da maior parte dos apitadores e também tinha ganho a amizade de muitos, o que sempre lhe favorecia dentro das pelejas.
A contenda da vez era mais uma finalíssima de um importante certame de futebol de campo na terra das araucárias. Somente a vitória lhes garantiria o caneco. Aos visitantes – um quadro da capital, a igualdade no escore faria com que voltassem para casa campeões. O prélio seria no Estádio conhecido como Alto do Monte. Como se esperava, aquela praça esportiva estava totalmente abarrotada, pois os caminhões e ônibus colocados à disposição dos torcedores do interior daquela cidade retornaram apinhados de gente. Foi o maior e mais espetacular público em uma porfia de futebol naquele canto do Estado. Aquele título teria que ser ganho na limpeza ou na sujeira, porque em duas decisões de anos anteriores, batera na trave. Foram “afanados” e alijados da conquista, tendo em vista que os homens de preto naqueles dois cotejos vieram “preparados” para favorecer aos visitantes. Pela falta de malandragem e inexperiência, o quadro daquele boleiro-beque havia sido garfado dentro de seus domínios. Mas agora eles tinham aprendido, nesta decisão jogariam pesado, também nos bastidores.
Durante os dias e na calada das noites da semana que antecedeu aquela pugna decisiva, o homem da “mala preta” daquele clube interiorano fez um turismo à capital. Além da promessa de grande “mufunfa”, presenteou os dirigentes da entidade máxima do futebol com whisky, vinhos, e podem acreditar, lombos de carneiros e patos recheados, tanto é, que o juizão solicitado pela direção do clube foi escalado para mediar a refrega decisiva. Tudo estava pronto e premeditado. Aquele caneco teria que ficar em casa, não só devido ao “onze” que era muito bom, mas porque o homem do referee viria “pronto”. Se não conseguissem o triunfo na bola, o apitador sabia que teria que dar um jeito.
Como capitão do esquadrão, naquela tarde antes do prélio o boleiro-beque foi receber o conhecido mediador no portão de acesso ao estádio e, sem que ninguém percebesse, deixou o juizão a par, que sob o banco, dentro do seu vestiário estava um maço de notas do tamanho e valor que ele jamais teria visto. Sussurrou no ouvido do apitador: é um presente. Salientou, com uma mensagem de “pressão subliminar”, para que ele não se preocupasse, pois se tudo saísse dentro dos “conformes” a integridade física dele estaria garantida.
Pelos dois tuneis de acesso, os dois esquadrões adentraram juntos às quatro linhas. No centro do gramado, na hora do par ou ímpar, os dois capitães, além de presentearem um ao outro com uma flâmula do seu clube, ficaram surpresos, se reconheceram, pois eram ex-moradores da mesma cidade e tinham um grau de parentesco – mesmo que de longe. Um, era o boleiro-beque do esquadrão do interior, o outro era o centroavante do quadro da capital. Após uma pequena resenha sobre a terra natal, se abraçaram. O homem de preto trilou o apito e a “mexerica” rolou. A contenda transcorria equilibrada, aguerrida, pau a pau, digna de uma decisão. Acusou o escore parcial na primeira metade, zero a zero. Rolou o balão de couro na etapa derradeira. A massa inflamada não parava de gritar. O mediador com uma atuação estupenda apitava tudo em cima do lance, nem de longe deixando claro que tinha recebido uma baita verba.
Achando que o juiz tinha pipocado no “acerto”, usando da sua malandragem aquele boleiro beque-capitão interiorano foi o protagonista no lance de expulsão do capitão contrário, o centroavante, seu parente. Estando lado a lado, enquanto conversavam quase dentro da meia-lua da grande área, no mesmo momento em que o mediador dirigia o olhar para os dois, com uma de suas mãos o beque-capitão apanhou a mão direita do centroavante trazendo-a contra o seu rosto. E num gritedo de ai… ai… ai…, se jogou ao chão simulando uma agressão. Incontinenti, o juizão mandou o centroavante da capital tomar banho mais cedo. O pau cantou e a contenda ficou vários minutos paralisada. Na cabine de rádio destinada para a emissora da capital, uns criticavam o centroavante pela atitude, outros o defendiam dizendo que fora vítima da malandragem do beque. Serenados os ânimos, mas revoltados, o onze da capital armou uma retranca para tentar garantir o empate. Sofrendo muita pressão dos da casa, a bola teimava em não entrar na cidadela visitante. Batia na trave, no costado ou na bunda dos dez defensores e nada do tento sair, deixando claro que poderiam adentrar a noite peleando que a peca não iria ninar no fundo dos cordéis.
Faltando uns dez minutos para o final do cotejo caiu um toró de chuva acompanhado de raios. Novamente o confronto ficou interrompido. Meio que na surdina o homem do referee se aproximou do beque-capitão, e quase sussurrando, balbuciou que era para ele mandar um atacante cair dentro da área. Orientado para beijar o barro o ponta de lança dos da casa teimava em não se atirar ao chão. Nervoso, a ponto de ter um colapso cardíaco, o juizão gesticulou e perguntou para o beque-capitão: o cara vai cair ou não vai? E, em mais uma blits dentro da área grande dos da capital, faltando um minuto para o término, em um bate rebate, numa dividida quem se atirou ao chão foi o beque-capitão. Ouviu-se aquele apito do referee, tão forte como nenhuma vez naquele cotejo. No ato, cercado sob protesto dos visitantes, o mediador com o indicador em riste, sinalizou e mandou colocar a redonda na marca da cal. Pênalti marcado para os da casa. A grande massa torcedora que já estava atrás da meta ojerizando o guarda-valas da capital dobrou em quantidade, foi à loucura. Em um grito uníssono todos começaram a gritar o nome do cobrador oficial, tendo a certeza que mais uma vez ele estufaria os cordéis, pois naquele certame, não tinha errado nenhum. E lá foi o beque-capitão. A chuva caia e a marca penal estava cheia de água. Ele colocou a deusa branca um pouco mais para trás. Posicionado para a cobrança, aguardava o golquíper ir para o centro da sua meta. Embaixo da trave toda sem grama também tinha o acúmulo de água e estava num barral só feito pelas traves da chuteira daquele enorme arqueiro. Para um jovem, aquele momento decisivo poderia influenciar no seu psicológico, mas não no beque-capitão, nunca teve medo, a sua experiência naquilo era para poucos. Na certeza de que o barbante seria estufado ele estava ansioso para sair para o “abraço”. Era fitado pelo guardião que retirava o barro acumulado nas travas das suas chancas ao bater com os solados na parte inferior de um dos postes. Em alto som, com o dedo indicador apontado para o beque-cobrador, o quíper falava: vou catar…vou catar…vou catar. Nada daquele palavreado incomodava o cobrador. “Zóio no zóio”, o golquíper e o beque se encaravam num sorriso maroto, pois os gritos da torcida entoando o nome do beque-capitão prenunciava naquele ato o tento do título. Na distância de sempre, com toda a massa torcedora gritando o seu nome, ouviu-se o forte trilar do apito – convicto do canto escolhido o beque-batedor correu em direção da pelota. No mesmo instante que batia com o pé direito na deusa branca, resvalou e o tiro saiu chocho indo mansamente no canto contrário ao escolhido pelo guapo para efetuar a defesa. Tentando retornar e se atirar para catar aquele chute chocho, o guapo também resvalou naquele barral não conseguindo chegar a tempo, e aquela bola, mansamente, parecendo uma eternidade, somente transpôs a linha da meta sem sequer encostar na rede. O grito de gol, engasgado, ecoou por todas aquelas paragens. A torcida pulou o alambrado e invadiu o campo, e carregando nos ombros o beque-capitão, já comemorava o caneco. Com vários minutos de interrupção, o juizão após o chute para reinício, sem dar nenhum acréscimo trilou definitivamente o apito e, aquele esquadrão que fora garfado em dois anos anteriores, pela primeira vez abiscoitou aquele certame e junto com os torcedores invasores deu a volta olímpica.
Muitos anos se passaram, e em uma semana véspera ao dia de Natal, aguardando a esposa e filhos que visitavam as lojas para comprarem presentes, aquele beque-capitão tomava deliciosamente um chope sentando em um barzinho em plena rua XV, na capital paranaense. Totalmente absorto vendo o enorme movimento de pessoas que por ali transitavam, ele foi pego de surpresa quando um estranho de supetão sentou em uma cadeira bem a sua frente. Olhos nos olhos, encarando bem aquele homem, ele tentava lembrar de onde o conhecia. Percebendo que o beque-capitão não estava reconhecendo-o, ele se aproximou e balbuciou: manda um atacante cair dentro da área. Ao ouvir aquelas palavras, imediatamente, como que se abrindo as cortinas, um filme sobre aquele prélio decisivo começou a rodar na tela da mente do beque. A cena foi interrompida quando aquele senhor falou: não apito mais, encerrei a carreira naquele cotejo. Respondeu o beque: aquele foi o meu último caneco, pendurei as chuteiras naquela contenda. Sem trocar mais nenhuma palavra sobre futebol, papeando sobre vários assuntos os dois tomaram vários chopes até o instante em que a esposa e filhos do beque campeão chegaram cheios de pacotes de presentes. Após chamar o garçom para quitar as despesas, o zagueiro foi impedido de fazê-lo. Novamente balbuciando em um dos ouvidos, aquele ex-mediador falou: a despesa hoje é por minha conta, pois com aquele maço de dinheiro comprei um Ford Corcel ano 1970.

COISAS DA BOLA são fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outras frutos da minha imaginação. Qualquer semelhança será puro acaso.

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COISAS DA BOLA

Fragmentos de uma infância

Noite sim, e noite também, o compadre Ava e a comadre Landa rumavam até nossa casa para prosear, tomar um capilé e jogar um pife. Naquela noite, só apareceu a madrinha Landa. Justificou, que o marido Ava fora pescar com uma turma de amigos lá para as bandas do Rio Timbó. Pediu para minha mãe se o seu afilhado poderia dormir na sua casa. Tinha medo de dormir sozinha. E, lá fui eu, nos meus dez anos, cuidar da minha madrinha.
A casa dela, de madeira, ainda cheirando à construção recente, comprada de um senhor que morava na beira da antiga Linha Velha, rangia com a leve brisa daquela noite. Papai foi quem fez o transporte com seu velho caminhãozinho Ford F600. Tinha ajudado a desmontá-la e montá-la no lugar atual.

Deitadinho ao lado da madrinha, eu tentava não tossir pela grande quantidade de fumaça dentro daquele pequeno quarto de dormir. Com um canivete afiado igual ao fio de uma navalha, após, cortar o fumo macaio e enrolar em uma palha de milho, ela fumava um paieiro atrás do outro. Parecendo nervosa, deitada de pança para cima e fitando o vazio, resmungava e falava baixinho – o Ava me paga, ele mentiu para mim, não foi pescar coisa nenhuma, tem rabo de saia na jogada. Sem idade para entender o palavreado, eu só queria dormir para acordar logo cedo e armar a capa dali fugindo daquela fumaceira.
A noite já ia para a madrugada, e numa tosse após a outra, acordei. Vi a madrinha Landa roncando. As labaredas já tomavam conta. Gritei e gritei, assustado. Ela acordou. Só tivemos tempo de sair para fora. Tudo ardeu rapidamente. Sobraram ali as cinzas e as muitas lágrimas na feição da madrinha. Ela se ojerizou mais, quando no clarear do dia, o padrinho Ava chegou, e meio sem jeito, lhe entregou uma fieira de lambaris.

Uma mãe. Um filho.

Filho de mãe solteira. O pai, já finado, nunca quis saber dele. Era a mãe e o filho, sozinhos, um para o outro. Eram unha e carne. Se amavam muito. Nunca se largavam. Viviam, um em função do outro. Separados, morreriam. Por que, sem um ou outro, de que lhe valeria viver?

Aquela mãe fez até o impossível para criá-lo bem. Conseguiu que ele não fizesse nada que não fosse direito. Ele dera um rapaz estimado por todos. Na lida então! Se sobressaia. No final da tarde ela sempre o esperava no portão. Quando ela saía para algum afazer, ele não sossegava enquanto ela não chegasse. Ficava ansioso esperando-a. Não quis casar, pois uma nora poderia incomodar a mãe.

Nas vezes em que tomavam chimarrão ao rodar do Sol, sentados à frente da casa conversavam comprido. Ela confidenciava – se ele lhe faltasse, se mataria. Cortaria os pulsos. Ele a acalmava – jamais te deixarei amada mãe. Você é tudo o que eu tenho, quero e preciso. Sem você, não sei se terei forças para prosseguir na jornada. E, assim viviam felizes, um para o outro.

Naquele final de tarde de uma sexta-feira, chovia de bica. Relâmpagos e trovões no céu. Não estranhou ela não estar lhe esperando no portão. Pensou! Não quer se molhar. Entrou, tirou a roupa molhada… sentiu algo estranho no ar. Se arrepiou todo, teve medo. Onde estava a sua mãe? Se perguntou! Chamou, chamou, gritou, gritou e nada. Procurou-a nas peças da casa. Lá estava ela dentro da banheira, somente com a cabeça de fora, ainda com os olhos não revirados. Parecia lhe sorrir. Mas, tinha dormido seu definitivo sono, de parada cardíaca. O chão fugiu de seus pés, ele quase desmaiou. Doeu de montão, dor sem jeito de se medir.

Como de costume naquele chão, chamou uma funerária para providências. Não veio o rabecão, e sim, uma picape. Sentado na traseira, com um guarda-chuva, se protegia e protegia a morta, não conseguiu. O guarda-chuva voou devido excesso de velocidade. Numa freada inesperada, bateu a cabeça na janela traseira. Um galo enorme ficou visível na sua fachada. Era mais uma dor, somada ao desespero. O mundo parecia estar indo ao fim. Doía, doía, tanto, tanto, que pareceu que ele não resistiria. Resistiu.

Enfim, os trâmites transcorreram na normalidade. Não tinha vaga no cemitério. Teve que cremar o corpo. Menos mal, dentro daquele pote as cinzas ficariam na sala. Estariam junto dele. Agora era vida nova, tinha que se acostumar, conseguiria? Uma dor daquelas, curava-se somente com muito tempo. E, ele passara rápido, mas a saudade teimava em ficar ali. Não queria ir embora de jeito maneira. Como consolo vivia beijando aquele pote de cinzas.

O tempo passou e amainou a dor e a saudade. Era chegada a hora de desfazer-se das roupas e objetos dela. Encontrou em cada peça da casa, escondida em algum canto, uma gilete. Atinou, que era verdade o que ela sempre lhe falava, que se ele faltasse, se mataria cortando os pulsos. Chorou, chorou e chorou.

Mais tempo passou, arrumou uma namorada. Daquelas, linda de morrer. Se apaixonou de loucura. Juntou os trapos. Ela foi morar com ele.

Um dia, ao tirar o pó dos objetos na sala ela encontrou aquele pote cheio de cinzas. Jogou no vaso sanitário. Puxou a descarga. Foi a maior cagada que fez. Viu ao maior desespero a que ele foi, ao notar que o pote estava vazio. Conheceu o lado monstro dele. Com uma gilete daquelas da sua mãe, cortou os pulsos da companheira. Viu-a, agonizando, esvair-se. O assoalho ficou vermelho. De frente ao crime, ligou para os tiras. Sentado ao lado do corpo bebeu uma, duas, três pingas misturadas com pólvora. Fez o sinal da cruz e murmurou oração. Com a mesma gilete cortou a sua jugular. E, lá fora chovia novamente, água em bica…

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COISAS DA BOLA

Por trás de um chute no capotão…

Prenunciando o que aconteceria nas arquibancadas do já lendário Estádio da Caixa D’água, a fuzarca já começou no sábado que antecedeu ao prélio. Vários torcedores iguaçuanos, raiz, soltavam rojões noite e madrugada adentro, onde a embaixada do rubro-negro da capital estava hospedada. A boleirada não pregou os olhos. As provocações passaram para o lado dos diretores dos dois Clubes que, em frente a uma bocada boêmia, quase foram às vias de fato. Só não deu um enfrentamento corporal porque o diretor do esquadrão curitibano pipocou e saiu na correria. Também um veículo Corcel, quase novo, ano 1970, que circulava buzinando pelos centros das cidades de Porto União e União da Vitória com um pendão atleticano, teve a sua antena quebrada e a bandeira arrancada e esgaçada.

Como o esperado, o clima estava ardendo. A rivalidade fora para as arquibancadas. Ambas torcidas trocavam, desde palavras das mais cabeludas até arremessos de frutas e ovos. De tanta ojeriza dos lados, antes mesmo da “moganga” rolar no relvado, um fanático atleticano foi cuspido da parte superior da arquibancada. Rolou por cima das cabeças daquele mar de gente quando o pau descambou. Estatelou-se no chão frente ao alambrado apinhado. Ali tinha virado a uma quase guerra, mas que foi contida pelo policiamento e por um pelotão de soldados do exército requisitado às pressas.

As arquibancadas e alambrados estavam estourando de assistência, até uma pulga encontraria dificuldades em se ajeitar para assistir aquele esperado espetáculo de bola, que seria o primeiro a criar a grande rivalidade entre os torcedores do Iguaçu e do Clube Atlético Paranaense, comprovada nos anos vindouros, inclusive com vários feridos e uma morte. Muitas bandeiras tremulavam, pois nunca antes, tanto povo se reuniu proporcionando um recorde de renda. Foi uma festa digna de ser apreciada, mas que deixou marcas, também no lombo de alguns.

Mal acomodados naquela parte das arquibancadas recém-construídas para aquele certame-debute, uma família de desportistas pertencentes ao proletariado chegara cedo ao Estádio. O pai, a mãe e os três filhos indo para a juventude encontraram dificuldades na portaria de acesso. O porteiro insistia em não os deixar adentrar carregando a cesta com frutas e alimentos. Depois do baita sururu e do tempo perdido, o porteiro, orientado, autorizou o acesso daquela família. Já dentro, o pai e a mãe, nervosos, procuravam conseguir um bom lugar e ver pela vez primeira um prélio entre chutadores profissionais. Mas levaram azar danado, o estádio já estava parecendo um formigueiro. Foram obrigados a se sentarem no aperto, no único lugar encontrado, no segundo degrau, que ficava bem próximo dos alambrados. Trazendo uma cesta cheia de frutas e uma volta de chouriço de porco, com sangue pisado, para forrar a barriga e suportar toda aquela tarde assistindo futebol, se acomodaram por ali mesmo. Não viam a hora de testemunharem o fragor da disputa.

Ouviu-se o referee. O balão de couro, enfim foi chutado dentro do palco verde. Um verdadeiro tapete. Entre vaias e muita gritaria os contendores peleavam pelo domínio da pelota como se ela fosse um prato de boia. O extrema-direita do Furacão, cabeludo e baixinho, liso igual a um bagre, rápido como um falcão-peregrino, comia a bola e dava show. Armava uma fumaceira para cima do beque iguaçuano. O que ele fazia com a peca era até de se duvidar. Parecia que tinha ela amarrada nos pés, não lhe fugia. Passava de roldão pelo beque – como queria – e dava risadas com o focinho virado para as arquibancadas. Ouvia xingamentos, mas não dava pelotas. Em um lance quando foi pegar o balão que saíra à lateral, bem em frente daquela família de torcedores, teve um caqui-café arremessado contra si. Não se fez de rogado. Jogando beijinhos, pisou com a chanca naquela fruta e tirando as sementes, sem rodeios, à várias dentadas, engoliu bonito.

Aquilo foi considerado como uma ofensa ao jovem autor do arremesso. Aquele ato ia dar o que falar. Soltando fumaça pelas ventas, fervendo por dentro, com mais raiva, aquele jovem torcedor atirou uma baita mexerica em direção ao corpo do ponteiro. Errou. Quando a pelota novamente saíra em lateral, o dianteiro nanico, apanhou e descascou a mexerica, e na ligeireza consumiu os gomos. Jogou mais beijinhos para a torcida e continuou dando um passeio no seu marcador. Pela sua atuação, ele merecia até que uma medalha fosse cunhada com seu nome.

Diferente do resultado esperado, aqueles torcedores em vez de hostilizá-lo mais, começaram a bater palmas quando ele fazia “gato e sapato” do beque. Começaram a gritar “olé”, “olé”. O coach, pressionado pelo reserva da posição, mandou aquele beque para a cerca – entrou o regra três para acabar com o baile dado por aquele extrema nanico. Ele jurou para o treinador, que ia aparar no meio o pontinha caipora. Não conseguiu cumprir a jura. Também foi mais um a ficar nas saudades. De cara, levou um esticão de bola no costado e viu o ponteiro como um The Flash. Comeu pó. Virou carne de canhão, quando o ponteiro fez um vai-mas-não-vai e quase trincou a sua espinha. Perdido, não sabia nem a cor do balão, só empapou a camisa. Aprendeu facilzinho, que o homem só vê o seu destino depois que tira o último véu. Depois daquela dança, aquele beque desistiu da vida na bola. Jogou as chuteiras na sarjeta. Foi trabalhar de pedreiro “meia cuié”.

Ao fim da peleja, com o quadro iguaçuano “tomando de quatro”, o jovem arremessador do caqui e da mexerica, com o seu peito de “sabiá” grudado ao alambrado, travou uma prosa com o baixinho e escorregadio extrema atleticano. Pediu-lhe a camisa. Se desculpando diante da impossibilidade em dar o manto, o atacante se justificou que não poderia fazê-lo, pois teria que usá-lo mais vezes no certame. Seu Clube vinha passando por dificuldades monetárias. Até o salário por vezes atrasava. Mas, assinou, como autógrafo, em um guardanapo de pano que estava na cesta de frutas do torcedor.

Nos tempos atuais, aquele pano está guardado dentro de um vidro de compota, lacrado, como relíquia e que comprova um tanto da história aqui contada.

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COISAS DA BOLA

Festa do Momo no Salão Poeira

Texto do livro – Missão Dada – Dez meses para a forja de um caráter.

O fato remonta ao início da década de 1970. Terminada a contenda amistosa no campo do Nacional (hoje um cemitério) bem em frente da Madeireira Miguel Forte, aqueles jovens integrantes do esquadrão de futebol do Salão São João, sentados embaixo de um grande pé de pinheiro, faziam planos para a noite carnavalesca. Por fazerem parte do proletariado, pular carnaval nos Clubes Concórdia e Clube Aliança estava fora de cogitação, pois jamais deixariam que aqueles seres da periferia frequentassem aquelas pistas de danças, que eram destinadas para os viventes da alta sociedade. Então, a festa do Momo teria que ser no mais tradicional e famoso salão boêmio das cidades, o Salão São João, conhecido como Poeira, também alcunhado por 25 Metros Abaixo dos Trilhos, afinal, eles teriam entrada franca, pois defendiam o esquadrão dos filhos do dono.
Já se ia pelas onze da noite. A imensa fila de pessoas comprando ingressos para adentrar ao salão era grande. A chuva forte tinha passado. Somente uma garoa fina molhava as cabeças dos enfileirados. Lá dentro o coro estava comendo solto. O senhor Severino fazia milagres no teclado daquele órgão. O baterista também dava show. Mesmo com as janelas fechadas devido a garoa, lá de fora, pelas frestas nas paredes sem sarrafos, através das réstias de luz, notava-se a grande quantidade de poeira dos sapatos, que com o barro já seco, misturado com o fubá que era colocado no assoalho para deixá-lo mais liso, iam ao ar.
Subindo os poucos degraus de madeira da escada de acesso, Kiko, Castro e Tivico, craques do esquadrão, muito conhecidos do porteiro, tinham o acesso livre. Já dentro do recinto se dirigiram ao mictório localizado lá no fundo do salão, e em frente a um pequeno espelho trinta por trinta, deram um trato na feição e pentearam as enormes jubas. Quando saíram do mijadouro, no ato, foram puxados por três damas para irem dançar, onde no tradicional trenzinho em fila indiana, todos cantando as marchinhas carnavalescas, faziam ziguezague por toda a pista.
No segue o baile, após duas danças os músicos paravam e os frequentadores encostavam o umbigo no balcão do bar e tomavam umas Brahmas (bebida da época). Dava-se o tempo para que todos pudessem se hidratar e, novamente as marchinhas carnavalescas eram tocadas. E, aquela gente serpenteava pela pista cantando, Mamãe eu quero… mamãe eu quero mamar… Assim seguia aquele ritual de sempre, até o dia clarear.
Tudo ia muito bem, era um suador só, de alegria, do ziguezague do trenzinho e das muitas cantorias, não deixando que o álcool permanecesse na cabeça das pessoas. Passando das três horas da madrugada, dançando naquele trenzinho da fila indiana, uma mulher muito bonita, esguia e alta, vestindo uma minissaia curtíssima, com o seu traseiro estilo tanajura, chamava a atenção de todos. Os marmanjos disputavam uma vaga naquele trenzinho, para poderem colocar as mãos nos quadris dela. Ora um, ora outro. Dançando, fazendo um carreiro naquela pista cheia de fubá, a “homarada” fazia de tudo para se aproximar daquela dama, que sempre tinha alguém com as mãos grudadas na sua cintura, e as vezes no “descuido”, encostavam nas popas do traseiro. Em dado momento, talvez por uma curva rápida do trenzinho, do meio das pernas daquela mulher desejada, caiu um pedaço de pano aveludado parecendo uma bolacha, igual uma esponja, dessas que as mulheres usavam para passar pó de arroz no rosto, pano este, manchado de sangue pisado – escuro –, que estava sendo usado como absorvente feminino.
Encostado na parede, Castro, que não tirava os olhos daquela fulana, presenciou o fato no ato e viu aquele pano ser chutado por muitos, sem que percebessem. Chutado por um ou por outro, aquele pano chegou até os pés dele, que se agachou e o apanhou. Chamou os amigos Kiko e Tivico e quando eles já estavam ao seu lado, fez uma enorme cagada. Porejado pelo álcool que ainda não tinha saído do seu corpo, Castro não se fez de rogado, pegou o absorvente e jogou para o alto no meio do salão. Aquele “Modess” caiu na cabeça de um homem, que acusou outro de ter jogado aquilo nele, desencadeando a maior briga de todos os tempos sobre aquela pista de dança. O “pau comeu” de cabo a rabo e o baile foi interrompido.
Encostados na parede ao lado do conjunto de músicos, Kiko e Tivico, os mais lúcidos, rezavam para que ninguém tivesse visto que fora o Castro o autor da proeza, pois, se um deles fosse envolvido na briga, os três, com certeza também iam para a porrada, nenhum deixaria o outro na mão, eram parceiros para o que desse e viesse. Após a chegada do policiamento civil, os briguentos foram levados para fora e encaminhados para a delegacia de polícia. Para a dama, que mais tarde descobriu-se o nome, Rachel, só lhe restou ir embora sem acompanhante, pois estava com o “chico”. Kiko, Castro e Tivico, em suas casas curaram o porre tomando chá de “água de valeta”, os bebuns conhecem esse remédio que cura ressaca.

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