COISAS DA BOLA
EUCLIDES DA CUNHA DA BEIRADA DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS
A pedido do Coronel João Gualberto, comandante das forças do Paraná, o Coronel Domingos Soares, prefeito de Palmas, entregou um bilhete ao monge José Maria pedindo para que se retirassem do reduto do Irani.
O Monge respondeu:
– Não precisamo brigá, porque não semo intrigado, não vamo faze injustiça, matá quem não é curpado.
Respondeu o Coronel João Gualberto:
– Entre outras coisas eu já trouxe até as cordas, vou levar todos os culpados.
Na batalha que se seguiu, o Monge José Maria foi morto a tiros. Enfurecidos, distinguindo o coronel pela cor da farda diferenciada, os caboclos gritavam:
– Piquem este desgraçado, porque ele é o culpado de tudo.
Enraivados, mataram o coronel João Gualberto a tiros e facadas. Dez soldados e onze seguidores do Monge perderam a vida naquele confronto e foram sepultados juntos em uma vala comum. A partir de então, milhares de vidas seriam ceifadas naquela guerra cabocla que ali teve o seu início.
Passeando em um sábado pela manhã na parte central das cidades irmãs, após sair da feirinha na antiga rodoviária de União da Vitória, onde bati um papo com várias pessoas amigas que ali também frequentam, me vi em frente da Estação União, no lado paranaense. Percebi que várias pessoas não pertencentes a este chão – depois descobri que eram turistas vindos da capital paranaense –, que pela parte superior dos muros olhavam ansiosamente e com interesses para dentro da Estação. Vendo aquele movimento, também batido pela curiosidade encostei a cabeça por cima do muro para tentar descobrir o que aquelas pessoas tentavam visualizar lá. Nisso, ouvi um senhor me perguntando do porquê daquele espaço ser fechado, não possibilitando que turistas usufruam daquela construção histórica, que poderia nos remeter até àquela guerra que chamam do Contestado, disse ele. Estranhei! Pois durante os dias de lida os quatro portões laterais, dois no lado catarinense e dois no lado paranaense sempre estão abertos, e agora estavam fechados. Pensei comigo, algo está errado, porque justamente no sábado os portões deveriam estar abertos para a visitação à gare.
E dando prosseguimento naquela resenha iniciada por um daqueles turistas – um professor de Geografia que leciona em uma faculdade – tentei lhe responder sobre a Estação União, mas tive que começar a contar desde o ano de 1905, quando os trilhos da Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande do Sul chegaram a estas terras contestadas. Tive que entrar na história e contar um pouco dos meus parcos conhecimentos sobre as várias causas e diferentes contextos da guerra, que muito tem a ver com um povo marginalizado, um povo excluído da sociedade, vítima dos grandes proprietários e facilmente envolvido e usado por líderes messiânicos, onde o governo, com o emprego das forças militares estaduais e federais, ajudou a ceifar milhares de vidas. Também dentre as causas da guerra, a doação de quinze quilômetros à margem direita e quinze à esquerda dos trilhos para que se construísse a ferrovia, obrigou a contratação de milhares de pessoas, que vindas de vários cantos brasileiros, e que, depois do término da construção ficaram sem emprego e sem condições de retornarem. A exploração madeireira através da famosa “Lumber”, a colonização com a vinda de emigrantes alemães e italianos e a expulsão dos moradores caboclos nativos, posseiros e grileiros que moravam há décadas na região, estiveram no topo do contexto da guerra – foi talvez o principal estopim, que deixou uma chaga ainda não cicatrizada de todo, mas pouco conhecida da geração atual. Na verdade, tanto para o governo monarquista, como para o republicano, esta região contestada era um território de invisibilidade e miséria.
Enfim, contei tudo o que aprendi ouvindo o palavreio dos meus dois bisavôs e lendo a vasta literatura de autores que se debruçaram sobre a história deste maior conflito social do século XX, para poder discorrer sobre a construção da Estação União. Enquanto conversávamos, não percebi, que tinha ficado posicionado no centro daquele círculo de pessoas, que extremamente interessadas ouviam tudo o que eu narrava. Respondendo as várias indagações, com o meu entusiasmo em contar o pouco do acontecido e alguns causos deste meu chão e, pelo interesse deles, cerca de duas horas tinha durado aquele papo sobre o conflito, até quando chegamos ao ano de 1942, 15 de agosto, data da inauguração da Estação União.
Contei que ainda no início da década de 1940 existiam duas estações ferroviárias, uma a poucos metros da outra, obrigando o trem a parar por duas vezes para atender os dois lados, Porto União-SC e União da Vitória-PR, pois no acordo de limites pós-guerra, no ano de 1916 as duas cidades foram dividas pelos trilhos ferroviários. Com o passar do tempo, notou-se a importância desse entroncamento ferroviário, e para racionar tempo de parada e espaço, optou-se pela construção de somente uma Estação que contemplasse as duas cidades, que mesmo tendo emancipações políticas diferentes, na realidade era uma só sociedade. Então, a Rede Ferroviária, com o apoio do governo Estadual e Federal resolveu investir no projeto.
Disse-lhes também, que para que não houvesse nenhum tipo de reclamação das partes interessadas, um projeto arquitetônico único e com a mesma disposição física privilegiaria as duas cidades. O que teria em um lado, teria no outro, inclusive, o nome escolhido foi Estação União. Também lhes falei do túnel, muito utilizado à época, onde os pedestres poderiam ir de um lado para outro com segurança, pois havia muita movimentação de comboios, tanto para viagens como para manobras das composições. Relatei também, que em 24 de novembro de 1950, um domingo, praticamente oito anos após a inauguração da Estação União, aconteceu o trágico acidente, onde a inditosa menina Jeanete, filha do senhor Reinaldo de Oliveira, conhecido como Teatino, treinador do Ferroviário E.C., pereceu no túnel. O fatídico aconteceu por estar aquela passagem subterrânea coberta por volumosa quantidade de água. Sobre a existência do túnel eles já sabiam, e ansiavam em atravessá-lo de um lado para outro, mas não foi possível.
Como se fossem meus bons alunos eles ouviram tudo atentamente, e como se fosse um presente do seu professor, tive a oportunidade em divulgar os livros de minha lavra, fazendo a doação de dez exemplares dos últimos dois lançamentos. Ao nos despedirmos, às risadas, fui alcunhado por aquelas pessoas, de Euclides da Cunha do chão contestado.
De tudo o que narrei acima, fica uma preocupação, que talvez seja de alerta para os responsáveis pelo turismo e cultura das nossas queridas cidades. Um ponto turístico dos mais bonitos, que faz parte da verdadeira história da nossa gente, não pode ficar com os portões de acessos fechados nos finais de semana. Matutei, que talvez seja a preocupação para que não roubem o outro sino. Penso eu, que se necessita de alguém amplamente conhecedor dos fatos históricos da Estação União e de nossas cidades, para que fique à disposição para contar aos visitadores a nossa, algumas vezes sofrida, mas linda trajetória.
COISAS DA BOLA são fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outras frutos da minha imaginação. Qualquer semelhança será puro acaso.
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COISAS DA BOLA
Mais uma de galo de briga
Do escritor da periferia – Craque Kiko.
Acadêmico da ALVI – Academia de Letras do Vale do Iguaçu.
Texto do livro prestes a ser lançado – Causos da vida de fato.
Um fulano de posses. Ele perambulava entre a elite e proletariado, mas entre a classe menos abastada é que se sentia à vontade.Amigo do peito dos amigos, sociável e de uma humildade a toda prova. Sempre que lhe solicitada uma ajuda, o fazia com gosto. Era muito conhecido em toda a região. Visto com um baita futuro político. Diziam, seria um prefeito, um deputado ou até um político nas mais altas esferas, por que não!Adorava uma caçada, tinha cães bem treinados. Corrida de cavalos, então, o fazia vibrar. Agora, em um rinhadeiro, seus galos de briga eram dos bons, muitos troféus faziam parte de sua galeria. Isso é um pouco do que era o Ivan. E, é sobre ele e briga de galo essa narrativa.
O povo entupia aquela rinha. Aquele ar enfastiado de catinga dos penosos, enfumaçado pelos paieiros feitos com fumo em corda, era conhecido daquela gente, que saído da raia de cavalos, ali do ladinho, já com muitas biritas pela cachola, vinha terminar aquele domingo assistindo a enorme e esperada peleja entre o invicto e famoso galo Branco, do Ivan. O oponente era um não menos famoso galo, também sem ter nunca conhecido um revés, da localidade conhecida como Três Barras, cidade vizinha da capital da erva-mate, Canoinhas.
Já ia para duas horas a luta, pau a pau. Era uma briga de gigantes, mas o galo visitante, tinhoso e técnico, até parecia que teve aulas, esporeava e dava bicadas certeiras. O galo Branco, após um pialocerteiro estava com um olho cegado, mas ainda peleava de igual para igual, até que, não deu mais para ele. Um contragolpe do visitante fez vazar a outra vista. Aí, foi uma verdadeira saraivada de golpes, mas resistia, e nas escuras tentava revidar. Seus golpes iam ao vazio, não achavam o seu algoz. Perto de três horas de uma verdadeira tunda, mas sempre em pé, valente, sangrando muito e só com a “capa da gaita”, o galo Brancotodo estoporado não atirava os panos. Não fazia parte da sua natureza se entregar. Então, o Ivan, com seu coração gemendo de pena, vendo tamanha judiaria, jogou a toalha e assumiu a derrota do galo Branco.
Zenóbio, um senhorzinho, amante inveterado de prélios galináceos, que não perdia de vista nenhuma contenda naquela rinha, pediu para si aquelegalo Branco, que na visão de todos por ali, tinha adquirido a aposentadoria por invalidez. Foi presenteado com o galo, e ouviu com tristeza do Ivan – faça um bom ensopado. Mas, Zenóbio, que pela experiência de vida, muitas vezes enxergava além muros, tinha outros planos para aquele galo. Vira nele uma raça fora do comum, pois aguentar em pé quase três horas de peleja, totalmente cego e levando pialo a briga toda, não merecia ir para a panela.
Antibióticos, banhos mornos, pomadas nas feridas, massagens com catinga de mulata e muito rango bem vitaminado, passou a ser o dia a dia daquele galo. Em três meses, com cegueira total, estava recuperado da sumanta levada no seu último combate. Foi fechado a sós em um pequeno galinheiro com uma galinha forte ebotadeira, que se achava a rainha da cocada preta. Fez valer o seu instinto de macho. Com a galinha tremendo e arrepiada, a cruza foi inevitável. No primeiro e único ovo daquela galinha periguete, deu o ar da graça neste mundo, um pintinho totalmente com penugens de uma brancura total, que a cada dia se via, saíra o focinho do papai.
O pinto cresceu e virou um galo porrudo. Zenóbio com seu vasto conhecimento o pôs em treinamento puxado. Vira naquele galo um futuro promissor, que poderia lhe dar muita mufunfa, mas não era só esse o seu interesse. Por intermédio de um telegrama enviado na Estação Ferroviária União, atou uma briga em altas cifras com aquele famoso galo de Três Barras, que ainda seguia invicto dando troféus e dinheiro para o seu dono.
Mais uma vez o rinhadeiro estava apinhado. Pulgas por ali se sentiriam espremidas. Tinha gente de todos os cantos e tocas das beiradas do Rio Iguaçu. Era a última briga daquele domingo. Mesmo sem terem visto o galo do Zenóbio, as apostas eram vinte e quatro contra um, favorável ao galo visitante, invicto e famoso. Como se fosse um prélio futebolístico alguém deu um apito para começar a renhida luta. Não foi renhida. Em poucas passadas, com golpes certeiros que pareciam igual a jogadas ensaiadas, o galão tresbarrensebeijou a lona e ficou estrebuchando. Era como se fosse uma vingança que estava engasgada, aquele galo vingara o galo pai.Zenóbio forrou a burra de tantas cédulas.
Abismado pela valentia daquele galo, Ivan quis saber de onde ele surgira. Zenóbioentão, contou toda a história, tintim por tintim e lhe deu de presente, pois aquele penoso era filho do cego galo que ele lhe dera para fazer um ensopado.
Naquela segunda-feira, ao viajar para o litoral para dar cuidados a uma de suas empresas, viajando tranquilo, Ivan teve o seu bilhete de passagem vencido, era a hora do seu desembarque. Do nada, uma encosta desmoronou e caiu sobre o seu auto. Ele desencarnou, e deste chão terreno, sob o comando de Zenóbio, não pode ver as glórias daquele galo, que passara a ser chamado de “Campeão”, do Ivan.
COISAS DA BOLA
Da inocência para o mundo cão
Ele tinha 17 anos, ela 16. Sempre que ele saía do treino, em frente da casa ela o esperava passar. Do outro lado da rua ele sorria, mas tinha receio de puxar uma prosa. Ela, espivetada, cansou de só ficar olhando. Puxou papo:
– Está com medo de mim?
Tímido. Criando coragem não sabe de onde, ele se achegou e proseou:
– Sim, tenho medo – nunca conversei com uma moça do teu naipe.
Pegou a mão direita dela, e com delicadeza beijou. Ela vermelhou toda. Ele sentiu ela tremer. Ela deu um beijo na bochecha dele. Emocionado, ele tremeu na base. E, foi desse jeito, que ataram um namoro.
Todo dia após o treino do esquadrão profissional, ela estava na frente de casa esperando por ele. Suspirava ansiosa quando ele demorava. Ele não via a hora de estar com ela. Ocultos por detrás do portão roubavam beijos. Os arroubos da juventude afloravam. A libido dele ia para a copa dos paus. Ela se umedecia nas partes íntimas.
Já não aguentavam aqueles encontros furtivos atrás do portão. Começaram a se encontrar num paiolzinho nos fundos da casa dela. O pai não queria de jeito nenhum que ela namorasse. Ela era nova de tudo. Namorar com um boleiro, jamais. O pai sempre estava de botuca, mas era logrado. Quando ia trabalhar, o namorico deles pegava fogo naquele paiol, mas não iam além de umas poucas bulinações.
O prélio pelo paranaense seria em Bandeirantes, contra o União. Na famosa Vila Maria. Viajando durante nove horas, ele matava a saudade ouvindo as músicas românticas nas fitas cassete que ela lhe emprestara junto com o seu gravador. Nessa viagem ele atinara. Estava perdidamente apaixonado. Na volta, ficaria nas barbas com o “sogro” e pediria para namorar de forma oficial. Se ele não deixasse, roubaria a filha.
A volta era muito esperada. Venceram o cotejo por um a zero. Ele fez o tento bimbando uma falta. Mais nove horas de viagem. Noite toda. Ele muito feliz e com saudades dela. O consolo foi ouvir as músicas românticas. Seis horas da manhã aportaram na Sede do esquadrão. Ele dormiu no colchão sobre um beliche até meio dia. De banho tomado, roupa nos trinques, recendendo desodorante Avanço, do lado do alojamentobombiava e esperava que o pai dela fosse trabalhar. Enfim! Ele foi. Na correria foi até lá. Pela primeira vez ela lhe abriu a porta da casa. Ele entrou afoitamente. Entre beijos e abraços, passou uma rasteira e ela se estirou ao chão. Ajeitou o couro no terreno e se preparou para atirar forte. Em cima dela. Beijos, beijos e mais beijos. Ele, ávido, rasgou aquela blusinha fina, retirou o sutiã e com a cabeça entre aqueles enormes seios, ora em um, ora em outro, chegou a revirar os olhos de tanto sugar.
Desconfiado, naquele dia, o pai fez que foi e, não foi trabalhar. Dando uma de “Migué”, lá na esquina ficou na espreita. Para sua própria desgraça armou um flagra. O que veria, nunca imaginou, talvez um futuro genro, “bezerrão”. Irado, enquanto correu para apanhar o machado lá no paiolzinho, o ex-futuro genro escafedeu-se, ouvindo que era um piá de bosta com os dias contados.
O caminho deixou de ser pela frente da casa dela. Recebeu de volta todas as cartas perfumadas escritas para ela. Junto na bolsa, veio um bilhete alertando-o. A par do flagrante, o irmão dela, um louco varrido, junto com um bando iriam canchá-lo de pau. Que se cuidasse. Ele se armou. Começou a andar berrado. Dando uma desculpa esfarrapada, emprestara de um amigo polícia um 38 de marca Schmidt. Andava com aquele caga-fogo escondido na parte detrás da cintura.
Armados de porretes, o bando lhe cercou. Quando foram lhe atacar, fez aquele trabuco cuspir fogo. Criou um rebuliço. Foi uma correria daquela turma. Nunca mais o importunaram. Mas, perdera de vez a namorada. Com muitas saudades, para conter o sofrimento, dentro da sua patente, vivia fazendo dedicação para ela usando os “cinco contra um”, imaginando estar sugando as suas enormes e duras tetas.
Sabedor que ela estava de mira com um grã-fino, com um calorão na testa começou a frequentar um balcão. Um amigo de paleta vendo a sua sofrência, convidou-o para ir junto em um casamento. Após emprestar um paletó, de peru, apareceu na festa do casório. Viu uma moça a fitá-lo. Com uns goles a mais, ele virou um poeta. Encantou-a e se encantou com ela. Ali, acabara de conhecer um grande amor da sua vida, não para todo o sempre, pois o para sempre não existe, um dia vira fumaça.
COISAS DA BOLA
A difícil peleia para se aposentar
Do escritor da periferia – Craque Kiko.
Perícia daqui e perícia de lá. Ele estava sendo julgado insano. Era mais um encostado pela previdência social. Voltar a trabalhar estava fora dos seus planos, nem a “pau juvenal”. Queria ser aposentado a qualquer custo.
A nova perícia estava próxima. Um dia antes, ele tomava uns goles de pinga misturada com pólvora. Juntos nessa mistura, dois comprimidos para dormir. Seu corpo começava a demonstrar que estava com algum mal. Seu coração parece que ia sair do peito. Tremeliques e palavras desconexas. Já fora da casinha, novamente ele circulava pelado pelo pátio do prédio. Imaginando ter nas mãos uma “maquina” de procurar ouro, afirmava que o fundo da fossa estava repleto dele. Aos gritos e plantando bananeira com o fiofó virado para a lua, ele via novamente a ambulância chegar para atendê-lo.
Famoso pelo ato, já era conhecido dos enfermeiros. Obedecia-os, e dentro da Van seguiam para a UPA dando risadas. Cara a cara com o médico de plantão, armava um banzé. Um sossega leão na veia levava-o ao sono tranquilizante. Um internamento era inevitável. Após dias, medicado, recebia alta hospitalar. A sua pretendida aposentadoria por invalidez, imaginava, caminhava a passos largos. Logo, logo pintaria. Voltar para o trampo, nem por misericórdia. Mas, eis, que, como um aborto da natureza, a sua cura apareceu do nada quando foi enviado para um sanatório.
Em uma noite, um dos plantonistas daquela casa para loucos não aguentando a fuzarca armada pelo pretendente à aposentadoria, resolveu ir para forra. Enquanto o interno dormia anestesiado o sono dos loucos, socou-lhe papel higiênico na boca e nos dois ouvidos. Também, com o interno deitado e amarrado na cama com a "busanfa" para cima, o enfermeiro tirou-lhe as pregas. Deflorou-o e gostou do ato. Toda noite o fato se repetia, mesmo com o interno acordado. Indefeso, só lhe restava chorar em silêncio. Algumas vezes reclamava, só que ninguém acreditava em suas palavras. Não aguentando mais aquelas sevícias, o louco de araque começou a se comportar. Melhorou do dia para a noite. Logo ganhou alta. Voltou a trabalhar no seu serviço público, mas lhe doía o botuqueiro quando entregava cartas sentado no selim de uma bicicleta.
Depois de anos, a sua tão esperada aposentadoria veio, não por invalidez, mas por tempo de serviço. Infelizmente ficara com sequelas - um de seus ouvidos ficou surdo e o seu fiote estava alargado. Só de imaginar em ouvir a palavra sanatório, ficava pianinho, e se escondia embaixo da cama. Quando encontrava aquele enfermeiro do sanatório, que virara seu vizinho de porta, suas vistas transbordavam em lágrimas.
Uma tarde para não se esquecer
Do escritor da periferia – Craque Kiko.
Um frio do capeta. Lá fora o vento ainda fraco, mas longe de ser somente uma brisa, balançava os pequenos galhos das duas pequenas palmeiras nos extremos do meu pequeno jardim retangular. O Sol há dias tinha deixado de nos visitar. Eu, parado frente da janela do meu museu-estúdio, olhava lá para fora querendo entender porque o Dom Bilu não parava de latir no grande portão. Naquela hora, ele deveria estar ninando dentro da sua casinha, lá nos fundos da garagem. De onde eu estava, só conseguia visualizar a metade do portão. Querendo descobrir o porquê da tamanha latição, colocando o chapéu, sai pela porta dos fundos e marquei presença junto dele na frente do dito portão. Descobri o motivo, e esquecendo o dia cinzento, frio e neblinoso, abri um enorme sorriso.
O motivo era justo e merecia aquele ganiçar, desde que fosse uma declaração de amor ou um elogio para ela. A cadelinha era linda, igual a sua dona que a segurava por uma pequena corda. A dona da, quem sabe futura namorada do Dom Bilu, foi-se dali levando a cachorrinha. Dom Bilu se acalmou, saiu na correria até a garagem lá no fundo do pátio e voltou trazendo na boca, aquele pedaço de dinossauro de borracha já meio esgaceado. Entendi de cara o que ele desejava. Então, jogando aquele toco de dinossauro da frente do portão até os fundos do pátio, cerca de 35 metros, iniciamos o preparo físico dele. Eu arremessava o pedaço daquele réptil, ele saía na correria, apanhava e trazia até mim. E, assim, após vinte arremessos, com ele já colocando a língua de fora, encerramos os trabalhos.
Para me recuperar, já sentado no banco do pergolado lá no fundo do quintal, enquanto eu bebia um café na xícara do Vasco, o Dom Bilu sentado ao meu lado, salgava o peito com uma iguaria feita pela minha esposa. A cada gole daquele café quente e gostoso, encarando o cãozinho, que também me encarava após uma dentada ou outra naquela perna de galinha, nós dirigíamos o nosso olhar lá para o portão da frente. O Dom Bilu na ânsia que aquela cachorrinha retornasse, e eu, esperando uma caminhonete de lenha picada, que recém tinha encomendado.
