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ESCRITOS DA MARGEM

O dia que acostumei

Numa tarde reparei um furo,
no fundo de meu bule
que utilizava para passar meu café,
no momento fiquei chateado e logo joguei fora
afinal, não cumpria seu papel de armazenar o café, assim que passado.
Tinha uma água a 100ºC,
minhas três colheres de café já no filtro
e meu bule não poderia mais ser utilizado,
naquele dia resolvi improvisar.
Olhei aos lados e nos armários
peguei um vidro de compota,
esses que as pessoas colocam pepinos para azedar,
inclusive adoro pepinos.
Coloquei o filtro sobre o vidro
e ali passei meu café, quase como os demais dias,
tudo foi se tornando automático
água, filtro, pó e o vidro.
Se passou algum tempo,
até que de modo involuntário
fixei meus olhos nesse objeto novo, o vidro,
estava com manchas marrons
foram alguns anos despejando ali o café,
só nesse instante atentei ao fato de que me acostumei,
acomodei,
o café passava,
o vidro esquentava,
ao despejar o líquido na garrafa,
minha mão queimava, como brasa
mas afinal, de que isso importava?
se já havia acostumado.
Nesse período, me acostumeicom o vidro.
Com quantas outras coisas já fui capaz de meacostumar?
Quantas invenções já estão acostumadas?
A quantos improvisos já acomodei?
O que é normal nessa hora, que na anterior nem existia?
Por que me acostumei, ao invés de questionar e buscar caminhos?
Por que estacionei assim?
Se eu sabia que aquele improviso me causaria dor,
por que não relutei?
aceitei o que me foi dado,
sabendo que aquilo não era real,
isso me torna pior ou melhor?
Talvez me torne real.
E continuou:
“Hoje pela manhã chegou um desconhecido lá em casa.”
“Conversamos, mateamos, contamos causos.”
“Minha mulher serviu o almoço, almoçamos e no começo da tarde o desconhecido foi até a cocheira que tenho atrás da casa, pegou meu cavalo, animal de raça, de valor inestimável.”
“A minha cela de prata, os arreios, o cavalo, tudo o desconhecido se apropriou. Como era bonito meu cavalo…”
“E sob minhas vistas, montou no cavalo, minha mulher na garupa, galopou rua a baixo, fiquei vendo desaparecerem no horizonte.”
“Há coisa mais triste que isso?”
Fiquei sem saber o que dizer. Depois de algum tempo, comentei:
“Perder a mulher é muito triste, inconsolável.”
O visitante olhou-me, sugou o mate que roncou, devolveu-me a cuia, agradeceu e antes de se retirar disse:
“A mulher ele pode ficar, mas me devolva o cavalo.”
E foi- se embora, jamais o vi novamente.

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ESCRITOS DA MARGEM

Poesia

Era um inverno impiedoso,
o frio era pouco para tanta dor e tristeza que sentiria naquela noite,
quando percebi sua chegada, não deu mais tempo para nada,
chegou. e me dominou. da forma que eu nunca tinha visto. ou sentindo antes,
uma fúria que ninguém era capaz de conter,
me arrebentou, me arremessou,
voei longe.
Levou meus pertences, minha dignidade,
me deixou sem nada, sem vida, sem forças,
nem meus filhos ficaram ilesos de sua revolta.
Os hematomas. . . até hoje vivem em mim,
nem tanto visuais, mas a lembrança não vai embora, permanece.
quando toco em partes de meu corpo que foram atingidas,
me vem a triste lembrança daquela noite,
meus filhos? eu nunca mais os vi,
vez ou outra eu sinto o cheiro deles, numa eterna lembrança,
vontade de agarrar, mas nem sei mais onde eles estão,
nem sei se aqui, eles estão.

Aquela noite me foi tirado tudo,
me foi arrancado,
com força e sem pensar,
uma fúria, que jamais vou esquecer.
Poderia ser esse, mais um relato, daquelas noites,
aquelas que meu marido chegava embriagado em casa,
confesso que enlouqueceria,
entraria em êxtase profundo,
ao ver o causador de tantas dores minhas,
sendo arremessado por um pronome feminino,
mas aquela noite,
eram as águas da natureza mostrando sua fúria,
levou o maldito, mas levou meus filhos também,
evidenciando quem realmente é a dona de tudo,
vão procurar inúmeras justificativas,
inúmeros culpados,
para inocentar o principal culpado,
a história vai se repetir, como segue e seguiu até hoje.

Se constrói inúmeros prédios,
o batizam de arranha-céus,
se amontoa concreto, colocam vidros,
enchem de cafonices,
no fim dão o nome de conceito,
como cereja do bolo, colocam uma celebridade para lá morar.
Iludidos e endinheirados seguem ostentando tamanha breguice,
propondo um trabalho gratuito sem nem perceber.
Ó miseráveis, quanta ilusão,
quanta mentira concretada em m².

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ESCRITOS DA MARGEM

Homens comuns

Queria saber de onde surge a sua ousadia,
eu te olho e não consigo ver,
é como se eu olhasse para o vazio,
você é sempre repleto de nada
e pensa que de alguma forma seria capaz de me causar algum dano.

Deixa-me te contar, não espero que entenda,
eu tinha cinco anos e já era acusado de algo,
soava algo abominável,
que eu só teria consciência muito tempo depois.

Quando criança por onde eu caminhava
as balas estavam em minha direção,
e pasmem,
nem um crime eu tinha cometido,
era apenas o viadinho do bairro.

Homens, senhores, mulheres, jovens, idosas,
não tinha um olhar capaz de me absolver,
apenas de me condenar,
o que mais incomodava neles, eu não sei
talvez o fato de eu jamais mudar.

E agora você vem me dizer que eu não sou capaz?
Eu fiz o impossível sem ter nada.

Chorei, matei, despertei, sobrevivi e vivo,
tomei para mim o mais precioso de mim mesmo,
e não será você, mais um homem comum
que irá me limitar.

Tipos como o seu eu danço e mato,
em minhas mãos, nem piada você é capaz de virar,
talvez vire pó,
e não falo das estrelas,
nem do universo,
falo daquele pó da rua de onde eu cresci,
um vazio, um nada.

Não, eu não sinto por você.

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ESCRITOS DA MARGEM

O efeito da morte

Sempre ouço que lá, ali, ela esteve, eu nunca fui apresentado, pode ser que nunca alguém desejou algo sem conhecer como lhe desejo.

Só queria que ela surgisse em minha porta, e não precisa bater, já e sempre esteve aberta à sua espera.
Hoje, eu sei que ela passou perto, não que eu a vi, mesmo que veja, não reconheço. Ouvi como uma criança escuta a dada hora da brincadeira. Olha, é um garoto, sorridente junto à sua mãe, só eles, afinal é mais um filho sem pai. Os dois comemoravam muito, foi como se ela estivesse passado a pouco naquela casa, estavam felizes.
Ah se nosso encontro ocorresse, estaria saltitando, em êxtase, ou ficaria em silêncio? Não sei como reagir em sua presença. Se ela resolvesse aparecer hoje, eu agarraria e dificilmente iria soltá-la, como um garimpeiro ao encontrar uma pepita.
Mais de anos se passaram e ela não veio ao meu encontro, busquei por todos os cantos, vias, vielas, não a vejo. Me desesperei, estou perdida, abandonada, solta no mundo.
Por mais força que eu faça para manter a esperança de sua chegada, está difícil acreditar que esse encontro aconteça. Como pode não ocorrer, buscam elegância, bons relacionamentos, pessoas interessantes, esse desencontro coloca em dúvida a minha própria pessoa.
Por mais difícil que seja enxergar essas qualidades em mim, vez ou outra, alguém me lembra e eu (rê)vivo, como uma flor ao ser regada num verão impiedoso. Não que o elogio seja meu alimento, talvez um álibi, um frescor, não sei ao certo. Nos últimos dias tem sido difícil acreditar, foram tantas dúvidas em meu decorrer, que não sei mais se sou eu, ou, o que rabiscaram sobre mim.
Estou perdido, e nessas perdas eu derrubei a esperança, não aquele inseto verde e esguio, me alerta Clarisse. Quando dei por mim já havia percorrido um longo trecho, não dava para voltar e pegá-la, a esperança fez parte de meu crescimento, não posso agarrar e criar agora, se perde; se foi; fica a lacuna repleta de ausência.
Aquele rapaz, que também foi mais um filho sem pai, sonhou muito, mas não bastou sonhar, era preciso vir para o real. Nessa vida o encontro não aconteceu com ele, não que seja um caso raro, temos muitos pelo Brasil o CARA PÁLIDA.
O jovem, que hoje é um adulto existe, talvez você nunca tenha enxergado, mas passou, e ao não enxergar, você não conta. Se não absorve, significa que além das oportunidades serem servidas numa bandeja, você não reconhece a ausência, e desconhece a gene do problema.
O adulto? Morreu de fome e frio, não teve oportunidade, quem dirá escolha. Veio sentenciado a morte, a fome, ao frio e ao cansaço.

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