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SOLIDÃO E SOLITUDE

De Cor e Salteado

Quando estudante de Letras, o professor de Língua Inglesa costumava pedir aos alunos que decorassem listas de verbos irregulares, e quem os pronunciasse de cor e salteado, tinha a nota acrescida de alguns pontos. Eu nunca consegui decorar, então nem aparecia para me apresentar. Penso que me faltava interesse pela tal decoreba dos verbos, já que sempre memorizei frases, pensamentos curtos e longos quando eles, de fato, me interessavam, para em seguida refletir sobre seu sentido. E hoje, gostei duma frase de Fernando Pessoa, e a memorizei: “segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas. O resto é sombra de árvores alheias”. Reflito sobre a frase: devemos ser egoístas? É claro que não. Segue a tua vida, não importa o quanto difícil seja, ou esteja; as tempestades não duram para sempre. Seja gentil com seu corpo e alma, ama-os, cuida-os, pois eles são sua morada. Perdoa seus erros, sem eles não haveria aprendizado. Sorria para os acertos, comemora-os sempre. Procura a tua paz. Só é possível transmitir paz quando se está em paz. Quanto aos verbos irregulares, sei de cor e salteado, aprendi na prática, não foi preciso decorá-los. Afinal, o que são uns pontinhos a mais…

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Marisa

Não sei por que hoje me lembrei de uma aluna, a Marisa. Fui professora dela há muitos anos. Marisa, uma mulher forte, apesar de tantas dificuldades na vida, voltou a estudar; desistia dos estudos no decorrer dos anos letivos, mas sempre retornava. Excelente aluna, inteligente, extrovertida, gentil, educada, de muitas qualidades. Eu procurava incentivá-la todas às vezes que retomava aos estudos, porém compreendia suas desistências, pois sabia o quão difícil era sustentar uma família grande, filhos, irmãos, netos, não deveria ser fácil. Tinha muitos trabalhos, era faxineira, catadora de recicláveis, distribuía folhetos pela cidade etc. Quantas vezes a vi puxando seu carrinho cheio de papelão, e me cumprimentava com um grande sorriso no rosto. Aposentei-me e não soube mais de minha aluna, contudo, um dia, há tempos, soube que ela era uma das pessoas que faleceram no trágico acidente de ônibus de turismo na Serra Dona Francisca. Quanta tristeza, tantos alunos se foram no acidente, lembro de todos, e de Marisa. Acredito que ela está num bom lugar, lugar reservado aos seres evoluídos, pois Marisa veio nesta vida para evoluir, e evoluiu, pois era alguém que mesmo com tantas provações sabia viver. Sinto não ter feito mais por aquela mulher cheia de luz, talvez ela não precisasse, pois em nossas conversas ela era o ser evoluído, eu estava longe do seu nível. Hoje compreendo isso. Algumas pessoas vêm nesta vida para acrescentar, iluminar, ensinar. Marisa foi uma delas.

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SOLIDÃO E SOLITUDE

Etiqueta à parte

Logo que acordei deixei o mindinho num dos pés da cadeira da cozinha, um grandioso fdp ensurdeceu o local, e na hora lembrei-me duma especialista em etiqueta, curta e grossa, e besta, porém engraçada, que diz que palavrão é falta de etiqueta, o que é óbvio. Pois bem, mas um palavrão bem dito na hora e lugar certos é um lavador de alma. Por exemplo, quando a pessoa insiste em algo que realmente não é do seu querer, um nem fodend… acabar de vez com a esperança do insistente. Vai tomar no c…, dito cara a cara, pausada e calmamente, lava a alma daquele que foi sacaneado. Quando algo dá totalmente errado, um pqp é de alívio imediato. Ao se deparar com algo grandioso, surpreendente, para bom ou ruim, caralh… traduz com perfeição o sentimento avassalador. Quase esqueci o vá se fod…, dito com calma, olhos nos olhos, chega a ser mais poderoso que o vai tomar no c… Enfim, etiqueta à parte, o palavrão dito pela manhã diminuiu a dor, me fez rir, e escrever.

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Amanhecer de Maria

Maria abriu os olhos, era o fim de uma noite mal dormida. Virou a cabeça para o lado em busca do velho rádio-relógio que repousava na mesa de cabeceira. O aparelho piscava, a luz caíra em algum lugar na noite. Uma réstia de sol entrava pela cortina. Seriam sete horas? Era animador imaginar sete horas, horário do habitual café da manhã na casa da mãe. Procurou pelo celular, eram seis e meia. Teria de esperar pelo café. Ligou a TV e a desligou de imediato. Nos últimos tempos as notícias televisivas a entristeciam. Deixou a cabeça cair, pesada, no travesseiro. Hoje precisava que o dia fosse proveitoso. Desde que se aposentara cobrava-se pela realização de algo novo, proveitoso, porém, a inércia do corpo superava a mente desassossegada. O fato das colegas aposentadas seguirem com suas vidas — acreditava que despreocupadamente — com viagens para Aparecida, de muito a inquietava, mesmo que essas viagens não fizessem parte dos seus planos. Sim, Maria tinha alguns (poucos) planos, e as viagens estavam inclusas, menos para Aparecida. Nunca fora uma católica fervorosa, na verdade, não tinha fervor algum. Contudo, fora encaminhada, assim como os irmãos, ao ritual católico: batismo, confirmação e eucaristia. Deixou a igreja — jamais a espiritualidade — ainda na adolescência, o templo sagrado a cansava. Quando criança Maria costumava olhar para trás antes do início das cerimônias eucarísticas, gostava de reparar nas pessoas que entravam, as seguia com os olhos até que chegassem ao local escolhido, onde ajoelhariam e rezariam com veemência. Numa dessas olhadas deparou-se com o olhar da madrinha, e sorriu, mas não foi correspondida. Não demorou que a mulher relatasse ao pai sobre o comportamento inadequado da afilhada, ou seja, o “olhar para trás”. Lembra-se dela a encarar o pai na espera da repreensão. O pai não deu importância, mudou de assunto. Hoje reconhece que a madrinha tinha alguma razão, o tempo na Casa de Deus era gasto para reparar, não somente nas atitudes, mas também nas roupas dos cristãos. Senhoras trajadas de seus terninhos domingueiros combinados a sapatos foscos. Meninas de vestidos esvoaçantes, e rostos angelicais, acompanhadas dos pais ou avós (como seria estar acompanhada deles?). Quanto aos senhores, pareciam muito velhos, de posturas altivas, com seus ternos de linho amarrotados e sapatos desengraxados — ainda hoje costuma observar o engraxe ou desengraxe dos calçados masculinos. O reparar ultrapassava comportamentos e vestes alheias, até chegar ao odor do mofo impregnado nos tecidos que cobriam o rebanho que se aglomerava pelos corredores ao término de cada cerimônia, e que Maria, pequenina, sentia contrariada. Apesar de os pesares, a vida na igreja era divertida, principalmente nas manhãs de Natal, quando mais do que nunca havia no que reparar: casacos de pele, com certeza ganhos na véspera, exibidos em pleno verão. Etiquetas, ainda com os preços, a saltar para fora das vestimentas. Capas de chuva na alvorada ensolarada. Enfim, o reparar de Maria era inocente, sem qualquer sentimento de reprovação, apenas para fazer o tempo passar frente às palavras intermináveis e incompreensíveis do sacerdote. O tempo voou e pousou no amanhecer de Maria, e a fez sorrir. Hoje o dia seria proveitoso.

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