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COISAS DA BOLA

BASTIDORES DE UM CHUTADOR DE BOLA

A contenda de domingo fora pegada. Um nobre e amigo repórter entrevistava o jovem boleiro, destaque daquele cotejo. Ele relatava fatos das suas andanças jogando bola. Antenado no que ele falava ao microfone, meus pensamentos como se estivessem em um grande comboio puxado pela Maria Fumaça 310, de forma meio enfumaçada e lenta viajou até um tempo pretérito na década de ouro do futebol profissional de Porto União da Vitória, 1970. Junto a esses pensamentos, também comecei a folear nos meus alfarrábios, vários recortes de jornais daqueles idos, provas incontestes de que eu fora um chutador de bola, profissional. Vitórias maiúsculas e tristes derrotas. Gols cobrando falta, de perto e do meio da rua. Tentos contra o patrimônio e tomadas de banho mais cedo por excesso de virilidade. Atuações de gala, e aquelas, onde nada deu certo, um fiasco. Os olhos umedeceram. Voltei mais no tempo, quando, ainda com aquele muito viço, comecei a fazer parte do esquadrão da Pantera Azul Dourada. Lembrei mais. O marejamento virou em abundantes lágrimas… Verde de muito para aquela empreitada, mas treinando com muito afinco na esperança de subir ao “onze” principal, eu imaginava e tentava enxergar como seria a minha vida lá adiante. Procurava o meu espaço naquilo que mais gostava na vida, tentava subir degraus nesta linda e às vezes ingrata profissão, que te leva rapidamente do paraíso para a porta do cafundó da terra do “cão tinhoso”, não vista por muitas pessoas interioranas e conservadoras, como uma labuta digna, muitas vezes sendo azucrinado pelo torcedor colado no alambrado, chamando de “fila-boia”, chupa-sangue e enterra time. Mas não importava nada disso, eu estava dando asas à um sonho. Nos trabalhos de condicionamento físico sempre era um dos primeiros a começar e o último a parar. Muitas vezes treinava sozinho, ensopava a camisa e era alvo de chacotas. Quando recluso na concentração ou no meu lar, assistia “tape” de pelejas e prestava atenção naqueles jogadores da minha posição. Levava certa vantagem sobre muitos colegas da bola. Chutava com as duas, mas destro, tinha uma bimba danada. Cobrava faltas como poucos. Quando batia tiro de meta com uma bicuda, a bola saia zunindo. Nos bicudões rasteiros, ela saia escrevendo o chão e o guardião não segurava, batia roupa ou a redonda levantava as malhas. Mogangas centradas na minha área me levavam ao quase êxtase, principalmente quando os vanguardistas contrários eram de tamanho alto. Adorava disputar uma bola de cabeça, lá em cima, na maioria das vezes lograva êxito e isso me levava quase ao delírio. Tudo fruto de treinamentos. Tinha comigo, que na hora que surgisse uma chance de entrar no palco verde como titular, agarraria a oportunidade com unhas e dentes, superaria os próprios limites. Por essa vontade, arrojo e uma determinação de poucos, sofria muitas gozações dos boleiros viajados, principalmente dos que tentavam levar a profissão na “manha”. Eles nem imaginavam: este piá tinha uma meta. Tenho claro na cachola, quando certa vez saí do treino só “caibro e vigamento”, com dores pelo corpo todo. Me dirigi até a sala do massagista, na intenção de usar a única banheira que existia por ali para fazer trabalhos de imersão em gelo. Ela estava pronta para ser usada. Mas, o massagista rindo no meu fuço, fez questão de deixar claro, que eu somente deitaria dentro daquela banheira quando fosse titular, e que nela tinha exclusividade o capitão do esquadrão, que era um verdadeiro mandachuva no elenco. Ainda nítido na ideia, tenho, de ter visto o treinador passar por ali, e ao escutar o palavreado, não disse nada e queimou o chão. Tudo estava correndo na normalidade, eu sentia, logo vai chegar a minha hora. Até, que em um coletivo apronto em uma sexta-feira, o ponta de lança titular, na malandragem, metendo o solado por cima da bola, tirou fiapos ao me rasgar a canela de cima a baixo em um lance de dividida. O meu tornozelo azulou e ficou do tamanho de uma laranja de umbigo. Três meses no Departamento Médico. Meu papai pediu para eu abandonar. Nem por isso joguei os panos desistindo de buscar o meu sonho. Envergar um dia aquela camisa como titular. Mesmo a custo elevado. Me recuperei. Aquilo foi mais um incentivo, passei a treinar com mais garra. Novamente eu estava voando baixo, bem tecnicamente e com muito sebo nos rins. Eis, que num repente, disputando aquele certame da elite paranaense com esquadrões de apurada técnica, em uma segunda-feira pela manhã, sem eu esperar, o treinador me chamou em sua sala e me deixou a par que no domingo, disse ele: – Creio que é chegada a tua hora meu filho. Serás um dos beques titulares contra o Clube Atlético Paranaense. E mais! Disse que eu seria o capitão do seu “onze” e que confiava muito em mim. Nos treinos coletivos daquela semana, com a escalação colada na porta do vestiário, apareci fazendo parte da becaria titular. Muitas lições, posicionamento e jogadas ensaiadas pelo meu setor eram feitas constantemente. O treinador parava o lance para me orientar. A boleirada em tom de gozação começou a me chamar, longe dele, de “fiinho do home”. O Estádio do Ferroviário estava arrebentando de gente. Minha mamãe junto com as vizinhas e suas sobrinhas criavam um reboliço na arquibancada de cimento. O meu pai com seu inseparável chapéu, embaixo da caixa d’água, atrás do gol de entrada, era só nervos. As bandeiras tremulavam, e como era de se esperar, o pau cantaria dentro e fora das quatro linhas. E cantou, muito. Isso já tinha virado uma normalidade nos prélios entre iguaçuanos e atleticanos. Nas arquibancadas onde se encontravam as duas torcidas, palavras de baixo calão, peito no peito e empurrões fazia com que o policiamento tivesse um trabalho quase impossível de realizar. Muitos torcedores foram para as vias de fato e ficaram com os lombos ardidos das cacetadas levadas dos paus das bandeiras. Dentro do retângulo verde, as touceiras ganhavam voo. O balão era disputado a cada milímetro. Pau a pau. Ali não tinha “o meu pai tem bodega”. Era chispa de todo o lado. No apagar da vela, quando o mediador deu o trilo final, o escore apontava 1 a 0 para a Pantera Azul Dourada. Quebrava-se um tabu. Pela vez primeira triunfava a Pantera diante do Furacão. Ao sair de dentro do gramado junto com o meia-atacante já consagrado, Barcímio Sicupira, que também atorado de alça de gaita, me fez a afirmação: – Porra piá! Com essa idade, batendo muito, chutando tudo e já com o esparadrapo de capitão! Você vai longe. Falei para ele, que aquele instante era muito esperado, enfim, fora meu, e que eu não poderia tê-lo deixado passar em um piscar de olhos. Que fui abençoado. Guardei somente para mim aquele pequeno diálogo. Hoje, Barcímio já está do outro lado da rua da vida, ascendeu. Cracaço. Todos faceiros após o confronto. Em festa e muita cantoria dentro de um ônibus, retornamos para a Sede da Pantera para tomar banho e jantar. Ainda dentro do ônibus, sem que os dois percebessem, ouvi o treinador solicitando para o massagista preparar a banheira de gelo para que eu fizesse uso. Poucos minutos após chegarmos no alojamento, fui chamado até a sala de massagem. Dando uma risada marota e me fitando de frente, o massagista apontou com o dedo indicador para a banheira que estava cheia de gelo e pronta para que eu fizesse uso, e falou: – Guri! Você fez por merecer. Fiquei mais alegre, quando o treinador abriu a porta, e colocando a cabeça para dentro junto com o tesoureiro, que pagou o nosso bicho pela vitória, deu um baita sorriso e falou para o massagista: – Cuida bem do meu capitão. Me deliciei dentro daquela banheira cheia de gelo. Não haveria dor pelo corpo que a minha felicidade não curasse. Depois do jantar, já noite adentro, muitos de nós, fomos no salão boêmio conhecido como Diogo, bem próximo, grudado na beirada do rio Iguaçu. Ao som do órgão, teclado pelo senhor Severino, era bonito o que se via lá dentro. Misturados com muitas “damas”, vários torcedores que estiveram no campo, também faziam questão de pagar cervejas para os boleiros. Como eu não bebia nada com álcool, somente conversava com eles, porque, mesmo sendo muito jovem já tinha ficado esperto, que os mesmos que pagavam cervejas e paparicavam nas vitórias, eram aqueles que vaiariam e xingariam nas derrotas, e o primeiro comentário seria que éramos uma catrefa que vivia na gandaia. Dançando e deslizando a noite toda naquela pista cheia de talco e serragem, no amanhecer, para aproveitar o dia de folga daquela segunda-feira, enroscado com uma linda dama da orgia, rumei até o casarão conhecido como Boneca do Iguaçu, situado num canto da ponte férrea, e me deleitei na luxúria. Continuei a farra. Afinal! O tesão estava na “copa do pau”.

COISAS DA BOLA são fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outras frutos da minha imaginação. Qualquer semelhança será puro acaso.

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COISAS DA BOLA

Fragmentos de uma infância

Noite sim, e noite também, o compadre Ava e a comadre Landa rumavam até nossa casa para prosear, tomar um capilé e jogar um pife. Naquela noite, só apareceu a madrinha Landa. Justificou, que o marido Ava fora pescar com uma turma de amigos lá para as bandas do Rio Timbó. Pediu para minha mãe se o seu afilhado poderia dormir na sua casa. Tinha medo de dormir sozinha. E, lá fui eu, nos meus dez anos, cuidar da minha madrinha.
A casa dela, de madeira, ainda cheirando à construção recente, comprada de um senhor que morava na beira da antiga Linha Velha, rangia com a leve brisa daquela noite. Papai foi quem fez o transporte com seu velho caminhãozinho Ford F600. Tinha ajudado a desmontá-la e montá-la no lugar atual.

Deitadinho ao lado da madrinha, eu tentava não tossir pela grande quantidade de fumaça dentro daquele pequeno quarto de dormir. Com um canivete afiado igual ao fio de uma navalha, após, cortar o fumo macaio e enrolar em uma palha de milho, ela fumava um paieiro atrás do outro. Parecendo nervosa, deitada de pança para cima e fitando o vazio, resmungava e falava baixinho – o Ava me paga, ele mentiu para mim, não foi pescar coisa nenhuma, tem rabo de saia na jogada. Sem idade para entender o palavreado, eu só queria dormir para acordar logo cedo e armar a capa dali fugindo daquela fumaceira.
A noite já ia para a madrugada, e numa tosse após a outra, acordei. Vi a madrinha Landa roncando. As labaredas já tomavam conta. Gritei e gritei, assustado. Ela acordou. Só tivemos tempo de sair para fora. Tudo ardeu rapidamente. Sobraram ali as cinzas e as muitas lágrimas na feição da madrinha. Ela se ojerizou mais, quando no clarear do dia, o padrinho Ava chegou, e meio sem jeito, lhe entregou uma fieira de lambaris.

Uma mãe. Um filho.

Filho de mãe solteira. O pai, já finado, nunca quis saber dele. Era a mãe e o filho, sozinhos, um para o outro. Eram unha e carne. Se amavam muito. Nunca se largavam. Viviam, um em função do outro. Separados, morreriam. Por que, sem um ou outro, de que lhe valeria viver?

Aquela mãe fez até o impossível para criá-lo bem. Conseguiu que ele não fizesse nada que não fosse direito. Ele dera um rapaz estimado por todos. Na lida então! Se sobressaia. No final da tarde ela sempre o esperava no portão. Quando ela saía para algum afazer, ele não sossegava enquanto ela não chegasse. Ficava ansioso esperando-a. Não quis casar, pois uma nora poderia incomodar a mãe.

Nas vezes em que tomavam chimarrão ao rodar do Sol, sentados à frente da casa conversavam comprido. Ela confidenciava – se ele lhe faltasse, se mataria. Cortaria os pulsos. Ele a acalmava – jamais te deixarei amada mãe. Você é tudo o que eu tenho, quero e preciso. Sem você, não sei se terei forças para prosseguir na jornada. E, assim viviam felizes, um para o outro.

Naquele final de tarde de uma sexta-feira, chovia de bica. Relâmpagos e trovões no céu. Não estranhou ela não estar lhe esperando no portão. Pensou! Não quer se molhar. Entrou, tirou a roupa molhada… sentiu algo estranho no ar. Se arrepiou todo, teve medo. Onde estava a sua mãe? Se perguntou! Chamou, chamou, gritou, gritou e nada. Procurou-a nas peças da casa. Lá estava ela dentro da banheira, somente com a cabeça de fora, ainda com os olhos não revirados. Parecia lhe sorrir. Mas, tinha dormido seu definitivo sono, de parada cardíaca. O chão fugiu de seus pés, ele quase desmaiou. Doeu de montão, dor sem jeito de se medir.

Como de costume naquele chão, chamou uma funerária para providências. Não veio o rabecão, e sim, uma picape. Sentado na traseira, com um guarda-chuva, se protegia e protegia a morta, não conseguiu. O guarda-chuva voou devido excesso de velocidade. Numa freada inesperada, bateu a cabeça na janela traseira. Um galo enorme ficou visível na sua fachada. Era mais uma dor, somada ao desespero. O mundo parecia estar indo ao fim. Doía, doía, tanto, tanto, que pareceu que ele não resistiria. Resistiu.

Enfim, os trâmites transcorreram na normalidade. Não tinha vaga no cemitério. Teve que cremar o corpo. Menos mal, dentro daquele pote as cinzas ficariam na sala. Estariam junto dele. Agora era vida nova, tinha que se acostumar, conseguiria? Uma dor daquelas, curava-se somente com muito tempo. E, ele passara rápido, mas a saudade teimava em ficar ali. Não queria ir embora de jeito maneira. Como consolo vivia beijando aquele pote de cinzas.

O tempo passou e amainou a dor e a saudade. Era chegada a hora de desfazer-se das roupas e objetos dela. Encontrou em cada peça da casa, escondida em algum canto, uma gilete. Atinou, que era verdade o que ela sempre lhe falava, que se ele faltasse, se mataria cortando os pulsos. Chorou, chorou e chorou.

Mais tempo passou, arrumou uma namorada. Daquelas, linda de morrer. Se apaixonou de loucura. Juntou os trapos. Ela foi morar com ele.

Um dia, ao tirar o pó dos objetos na sala ela encontrou aquele pote cheio de cinzas. Jogou no vaso sanitário. Puxou a descarga. Foi a maior cagada que fez. Viu ao maior desespero a que ele foi, ao notar que o pote estava vazio. Conheceu o lado monstro dele. Com uma gilete daquelas da sua mãe, cortou os pulsos da companheira. Viu-a, agonizando, esvair-se. O assoalho ficou vermelho. De frente ao crime, ligou para os tiras. Sentado ao lado do corpo bebeu uma, duas, três pingas misturadas com pólvora. Fez o sinal da cruz e murmurou oração. Com a mesma gilete cortou a sua jugular. E, lá fora chovia novamente, água em bica…

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COISAS DA BOLA

Por trás de um chute no capotão…

Prenunciando o que aconteceria nas arquibancadas do já lendário Estádio da Caixa D’água, a fuzarca já começou no sábado que antecedeu ao prélio. Vários torcedores iguaçuanos, raiz, soltavam rojões noite e madrugada adentro, onde a embaixada do rubro-negro da capital estava hospedada. A boleirada não pregou os olhos. As provocações passaram para o lado dos diretores dos dois Clubes que, em frente a uma bocada boêmia, quase foram às vias de fato. Só não deu um enfrentamento corporal porque o diretor do esquadrão curitibano pipocou e saiu na correria. Também um veículo Corcel, quase novo, ano 1970, que circulava buzinando pelos centros das cidades de Porto União e União da Vitória com um pendão atleticano, teve a sua antena quebrada e a bandeira arrancada e esgaçada.

Como o esperado, o clima estava ardendo. A rivalidade fora para as arquibancadas. Ambas torcidas trocavam, desde palavras das mais cabeludas até arremessos de frutas e ovos. De tanta ojeriza dos lados, antes mesmo da “moganga” rolar no relvado, um fanático atleticano foi cuspido da parte superior da arquibancada. Rolou por cima das cabeças daquele mar de gente quando o pau descambou. Estatelou-se no chão frente ao alambrado apinhado. Ali tinha virado a uma quase guerra, mas que foi contida pelo policiamento e por um pelotão de soldados do exército requisitado às pressas.

As arquibancadas e alambrados estavam estourando de assistência, até uma pulga encontraria dificuldades em se ajeitar para assistir aquele esperado espetáculo de bola, que seria o primeiro a criar a grande rivalidade entre os torcedores do Iguaçu e do Clube Atlético Paranaense, comprovada nos anos vindouros, inclusive com vários feridos e uma morte. Muitas bandeiras tremulavam, pois nunca antes, tanto povo se reuniu proporcionando um recorde de renda. Foi uma festa digna de ser apreciada, mas que deixou marcas, também no lombo de alguns.

Mal acomodados naquela parte das arquibancadas recém-construídas para aquele certame-debute, uma família de desportistas pertencentes ao proletariado chegara cedo ao Estádio. O pai, a mãe e os três filhos indo para a juventude encontraram dificuldades na portaria de acesso. O porteiro insistia em não os deixar adentrar carregando a cesta com frutas e alimentos. Depois do baita sururu e do tempo perdido, o porteiro, orientado, autorizou o acesso daquela família. Já dentro, o pai e a mãe, nervosos, procuravam conseguir um bom lugar e ver pela vez primeira um prélio entre chutadores profissionais. Mas levaram azar danado, o estádio já estava parecendo um formigueiro. Foram obrigados a se sentarem no aperto, no único lugar encontrado, no segundo degrau, que ficava bem próximo dos alambrados. Trazendo uma cesta cheia de frutas e uma volta de chouriço de porco, com sangue pisado, para forrar a barriga e suportar toda aquela tarde assistindo futebol, se acomodaram por ali mesmo. Não viam a hora de testemunharem o fragor da disputa.

Ouviu-se o referee. O balão de couro, enfim foi chutado dentro do palco verde. Um verdadeiro tapete. Entre vaias e muita gritaria os contendores peleavam pelo domínio da pelota como se ela fosse um prato de boia. O extrema-direita do Furacão, cabeludo e baixinho, liso igual a um bagre, rápido como um falcão-peregrino, comia a bola e dava show. Armava uma fumaceira para cima do beque iguaçuano. O que ele fazia com a peca era até de se duvidar. Parecia que tinha ela amarrada nos pés, não lhe fugia. Passava de roldão pelo beque – como queria – e dava risadas com o focinho virado para as arquibancadas. Ouvia xingamentos, mas não dava pelotas. Em um lance quando foi pegar o balão que saíra à lateral, bem em frente daquela família de torcedores, teve um caqui-café arremessado contra si. Não se fez de rogado. Jogando beijinhos, pisou com a chanca naquela fruta e tirando as sementes, sem rodeios, à várias dentadas, engoliu bonito.

Aquilo foi considerado como uma ofensa ao jovem autor do arremesso. Aquele ato ia dar o que falar. Soltando fumaça pelas ventas, fervendo por dentro, com mais raiva, aquele jovem torcedor atirou uma baita mexerica em direção ao corpo do ponteiro. Errou. Quando a pelota novamente saíra em lateral, o dianteiro nanico, apanhou e descascou a mexerica, e na ligeireza consumiu os gomos. Jogou mais beijinhos para a torcida e continuou dando um passeio no seu marcador. Pela sua atuação, ele merecia até que uma medalha fosse cunhada com seu nome.

Diferente do resultado esperado, aqueles torcedores em vez de hostilizá-lo mais, começaram a bater palmas quando ele fazia “gato e sapato” do beque. Começaram a gritar “olé”, “olé”. O coach, pressionado pelo reserva da posição, mandou aquele beque para a cerca – entrou o regra três para acabar com o baile dado por aquele extrema nanico. Ele jurou para o treinador, que ia aparar no meio o pontinha caipora. Não conseguiu cumprir a jura. Também foi mais um a ficar nas saudades. De cara, levou um esticão de bola no costado e viu o ponteiro como um The Flash. Comeu pó. Virou carne de canhão, quando o ponteiro fez um vai-mas-não-vai e quase trincou a sua espinha. Perdido, não sabia nem a cor do balão, só empapou a camisa. Aprendeu facilzinho, que o homem só vê o seu destino depois que tira o último véu. Depois daquela dança, aquele beque desistiu da vida na bola. Jogou as chuteiras na sarjeta. Foi trabalhar de pedreiro “meia cuié”.

Ao fim da peleja, com o quadro iguaçuano “tomando de quatro”, o jovem arremessador do caqui e da mexerica, com o seu peito de “sabiá” grudado ao alambrado, travou uma prosa com o baixinho e escorregadio extrema atleticano. Pediu-lhe a camisa. Se desculpando diante da impossibilidade em dar o manto, o atacante se justificou que não poderia fazê-lo, pois teria que usá-lo mais vezes no certame. Seu Clube vinha passando por dificuldades monetárias. Até o salário por vezes atrasava. Mas, assinou, como autógrafo, em um guardanapo de pano que estava na cesta de frutas do torcedor.

Nos tempos atuais, aquele pano está guardado dentro de um vidro de compota, lacrado, como relíquia e que comprova um tanto da história aqui contada.

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COISAS DA BOLA

Festa do Momo no Salão Poeira

Texto do livro – Missão Dada – Dez meses para a forja de um caráter.

O fato remonta ao início da década de 1970. Terminada a contenda amistosa no campo do Nacional (hoje um cemitério) bem em frente da Madeireira Miguel Forte, aqueles jovens integrantes do esquadrão de futebol do Salão São João, sentados embaixo de um grande pé de pinheiro, faziam planos para a noite carnavalesca. Por fazerem parte do proletariado, pular carnaval nos Clubes Concórdia e Clube Aliança estava fora de cogitação, pois jamais deixariam que aqueles seres da periferia frequentassem aquelas pistas de danças, que eram destinadas para os viventes da alta sociedade. Então, a festa do Momo teria que ser no mais tradicional e famoso salão boêmio das cidades, o Salão São João, conhecido como Poeira, também alcunhado por 25 Metros Abaixo dos Trilhos, afinal, eles teriam entrada franca, pois defendiam o esquadrão dos filhos do dono.
Já se ia pelas onze da noite. A imensa fila de pessoas comprando ingressos para adentrar ao salão era grande. A chuva forte tinha passado. Somente uma garoa fina molhava as cabeças dos enfileirados. Lá dentro o coro estava comendo solto. O senhor Severino fazia milagres no teclado daquele órgão. O baterista também dava show. Mesmo com as janelas fechadas devido a garoa, lá de fora, pelas frestas nas paredes sem sarrafos, através das réstias de luz, notava-se a grande quantidade de poeira dos sapatos, que com o barro já seco, misturado com o fubá que era colocado no assoalho para deixá-lo mais liso, iam ao ar.
Subindo os poucos degraus de madeira da escada de acesso, Kiko, Castro e Tivico, craques do esquadrão, muito conhecidos do porteiro, tinham o acesso livre. Já dentro do recinto se dirigiram ao mictório localizado lá no fundo do salão, e em frente a um pequeno espelho trinta por trinta, deram um trato na feição e pentearam as enormes jubas. Quando saíram do mijadouro, no ato, foram puxados por três damas para irem dançar, onde no tradicional trenzinho em fila indiana, todos cantando as marchinhas carnavalescas, faziam ziguezague por toda a pista.
No segue o baile, após duas danças os músicos paravam e os frequentadores encostavam o umbigo no balcão do bar e tomavam umas Brahmas (bebida da época). Dava-se o tempo para que todos pudessem se hidratar e, novamente as marchinhas carnavalescas eram tocadas. E, aquela gente serpenteava pela pista cantando, Mamãe eu quero… mamãe eu quero mamar… Assim seguia aquele ritual de sempre, até o dia clarear.
Tudo ia muito bem, era um suador só, de alegria, do ziguezague do trenzinho e das muitas cantorias, não deixando que o álcool permanecesse na cabeça das pessoas. Passando das três horas da madrugada, dançando naquele trenzinho da fila indiana, uma mulher muito bonita, esguia e alta, vestindo uma minissaia curtíssima, com o seu traseiro estilo tanajura, chamava a atenção de todos. Os marmanjos disputavam uma vaga naquele trenzinho, para poderem colocar as mãos nos quadris dela. Ora um, ora outro. Dançando, fazendo um carreiro naquela pista cheia de fubá, a “homarada” fazia de tudo para se aproximar daquela dama, que sempre tinha alguém com as mãos grudadas na sua cintura, e as vezes no “descuido”, encostavam nas popas do traseiro. Em dado momento, talvez por uma curva rápida do trenzinho, do meio das pernas daquela mulher desejada, caiu um pedaço de pano aveludado parecendo uma bolacha, igual uma esponja, dessas que as mulheres usavam para passar pó de arroz no rosto, pano este, manchado de sangue pisado – escuro –, que estava sendo usado como absorvente feminino.
Encostado na parede, Castro, que não tirava os olhos daquela fulana, presenciou o fato no ato e viu aquele pano ser chutado por muitos, sem que percebessem. Chutado por um ou por outro, aquele pano chegou até os pés dele, que se agachou e o apanhou. Chamou os amigos Kiko e Tivico e quando eles já estavam ao seu lado, fez uma enorme cagada. Porejado pelo álcool que ainda não tinha saído do seu corpo, Castro não se fez de rogado, pegou o absorvente e jogou para o alto no meio do salão. Aquele “Modess” caiu na cabeça de um homem, que acusou outro de ter jogado aquilo nele, desencadeando a maior briga de todos os tempos sobre aquela pista de dança. O “pau comeu” de cabo a rabo e o baile foi interrompido.
Encostados na parede ao lado do conjunto de músicos, Kiko e Tivico, os mais lúcidos, rezavam para que ninguém tivesse visto que fora o Castro o autor da proeza, pois, se um deles fosse envolvido na briga, os três, com certeza também iam para a porrada, nenhum deixaria o outro na mão, eram parceiros para o que desse e viesse. Após a chegada do policiamento civil, os briguentos foram levados para fora e encaminhados para a delegacia de polícia. Para a dama, que mais tarde descobriu-se o nome, Rachel, só lhe restou ir embora sem acompanhante, pois estava com o “chico”. Kiko, Castro e Tivico, em suas casas curaram o porre tomando chá de “água de valeta”, os bebuns conhecem esse remédio que cura ressaca.

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