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Atalaia de Acaiene

Atalaia de Acaiene

Distinto leitor do Caiçara, é com grande honra que estreio a mais nova coluna do jornal. E nada mais auspicioso que iniciar apresentando minha figura. Nasci em Belém do Pará no dia de Iemanjá de 1987, o que entrega meus 36 anos. Fiz Ciências Biológicas na Universidade Estadual de Campinas, onde obtive meu doutorado em Genética Humana, com uma passagem pela Universidade da Pensilvânia. Sou professor e pesquisador em Biologia/Genética no Instituto Federal do Paraná, campus União da Vitória, onde ainda coordeno o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI). Eu sempre me apresento também como capoeira, talvez isso me defina até melhor do que a docência e a pesquisa, porque foi nessa manifestação popular que entendi quem sou e o que quero alcançar do ponto de vista não só individual, mas também coletivo. Isso deve ficar mais claro aos que acompanharem a coluna. Aliás, me permita fazer uma correção: “claro” não, escuro como o tom da minha pele – o que também tem tudo a ver com essa coluna. Mas não se engane, caríssimo leitor, pessoas negras não servem apenas para abordar questões étnico-raciais, embora esse seja um tópico importante não apenas para mim (e esta coluna), mas para qualquer pessoa que viva no século XXI. Isso também vai ficar cada vez mais escuro nessa coluna. No entanto, abordaremos assuntos diversos nesse espaço, ciência, sociedade, psicologia, filosofia, atualidades e o que mais for importante para entendermos um pouco desse mundo às vezes poético, às vezes louco e, claro, na maioria vezes, ambos.

Sobre o nome da coluna: Atalaia de Acaiene é um posto de vigilância do Quilombo de Palmares, resistência antiescravagista e anticolonial que durou um século no período entre os XVI e XVII. No último dia 20 rememoramos a morte de Zumbi, uma liderança política e militar do Quilombo, mas que passou a longe de ser a única personagem de destaque de Angola Janga, como se autointitulava os mocambos que conhecemos como Quilombo dos Palmares. Os quilombolas se organizavam de maneira complexa sob comando de altivas mulheres que atuavam como lideranças políticas, espirituais, militares e diplomáticas como Akotirene, Aqualtune e Dandara. Mulheres indígenas e negras as quais a História oficial insiste na tentativa de apagar.
Aqui convido o leitor a se unir a mim nesse posto de sentinela, para que possamos olhar para a realidade a partir do alto, distante e imerso ao mesmo tempo, na posição de espectador e partícipe. Da única forma possível, a partir do ponto de vista contracolonial, que tanto nos ensinou Nêgo Bispo, que ancestralizou dia 03 de dezembro último. Nêgo Bispo revelou o inestimável saber das comunidades tradicionais, sua cosmovisão e as potencialidades de transformação que carregam. Minha escolha de referencial não é casual, esse que vos fala realmente crê que as problemáticas da nossa sociedade não podem encontrar solução no mesmo arcabouço teórico que gerou as contradições que vivemos. Sim, precisamos estudar Aristóteles, Platão, Marx, Descartes, Agostinho, Freud, Foucault, Sartre, Baumann, Hobsbawm, etc. Mas é muito limitante acreditar que apenas homens de origem europeia possam apresentar análise e prognósticos para um mundo que é muito maior do que a lente do pensamento ocidental pode se propor a observar.
Sobre o ocidente, cabe um esclarecimento. O chamado “mundo ocidental”, tal como definido por Samuel Huntington, compreende apenas parte da Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Ou seja, aqueles que ditam o que seriam História, Ciência, Filosofia, Arte universais. A bem dizer, toda a humanidade. Gostaria de lembrar que não fazemos parte da definição citada, mesmo no sul do Brasil. A História perdoa os vis, mas é impiedosa com os ignorantes. Um dos nossos maiores erros enquanto nação é não reconhecermos nossa formação profundamente negra e indígena. Não apenas não reconhecemos, desprezamos conhecimentos, tecnologias e a filosofia que emanam dessas riquíssimas fontes.
E o que Porto União da Vitória tem a ver com tudo isso? Eu responderia que aqui é o lugar em que percebi essas contradições de forma mais evidente. As Cidades Gêmeas se percebem enquanto europeias, em sua memória, tradições e festas. Mas a vida cotidiana diz o contrário. O território em que estamos foi palco do Contestado, conflito que exterminou e expulsou os povos caboclos da região por onde passa a linha de trem. Povos inimigos do “progresso”, ao mesmo tempo em que se dava um processo de branqueamento em todo o território nacional. Não nos furtemos de lembrar que os colonos que aqui chegaram tinham apoio do governo federal, muitas vezes na forma de terras e/ou garantia de trabalho. Serviriam para trazer a pureza e a civilidade do povo europeu, contra os mestiços, negros e indígenas que seriam os culpados pelo atraso brasileiro. Acontece que os problemas mais agudos que enfrentamos, a exploração, desigualdade, violência e mudanças climáticas são fruto da ideia de desenvolvimento e civilidade presentes na ideia de sociedade do Ocidente, que teimamos em imitar ainda hoje.
A presente coluna tem como objetivo questionar esses paradigmas e servir de convite para descobrirmos o que nos faz únicos e, ao meu ver, promissores enquanto país. Nossos povos originários, herança africana e mestiça, além da contribuição europeia, são os elementos que compõem o caldeirão cultural do Brasil e, acredito, nossa maior esperança de prosperar como civilização. Enxergo essa complexidade na forma de falar, nos ritos, rezas, crenças, religiosidade e cultura da região de maneira geral. Nos falta perceber que o Contestado é Canudos, que temos quilombos nas periferias da cidade e que nossos hábitos são caboclos, apenas a partir daí teremos identidade própria e qualquer esperança de emancipação.

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Reflexões sobre a Consciência Negra

             Mês passado passamos por um marco importante, o último 20 de novembro foi feriado nacional pela primeira vez, dada a instituição do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra pela lei nº 14.759 de 2023. É, sem dúvida, um avanço importante a homenagem a Zumbi dos Palmares e a dedicação da data para reflexão e cultivo de nossa memória histórica. A data rememora a captura e assassinato do líder palmarino a 330 anos atrás, e foi reivindicada por muitos anos como símbolo da resistência negra e da conscientização acerca do racismo em contraposição ao 13 de maio de 1888, data da Abolição. Esta última, ocorrida há apenas 136 anos, carrega consigo a dupla insígnia da vergonha: em primeiro lugar, por nos lembrar que fomos o último país do mundo a abandonar o regime escravocrata e, em segundo, pela tentativa de glorificar a família real, na forma da Princesa Isabel. A busca por pintar a família Orleans e Bragança como heroica esbarra na própria história, já que em 1889, ano seguinte à Abolição, cai o Império e se inicia a República, demostrando como a manutenção dos estratos dominantes e as estruturas de poder eram profundamente dependentes da aberração histórica da escravidão.

            O estabelecimento oficial da data é importante ainda por combater dois dos grandes problemas que temos enquanto nação: a tendência ao esquecimento da nossa história e a contemporização. É por conta destes equívocos que perdoamos os perpetradores dos mais nefastos crimes contra nosso povo, como os torturadores na ditadura civil-militar ou até romantizamos o papel de abusadores, assassinos e traficantes de escravizados como os bandeirantes, os senhores de engenho, barões do café, coronéis e generais como os que atuaram exterminando as populações caboclas na região em que nos encontramos. Exemplo disso é que a artilharia da 5ª Divisão do Exército recebe o nome de Marechal Setembrino de Carvalho. Não se trata de revirar o passado, pois ele se encontra muito presente, a exemplo do recente debate sobre anistia aos que buscaram derrubar o estado democrático de direito no ano passado. O episódio nos remete ao general Olympio Mourão Filho, anistiado por tentativa de golpe em 1961 e um dos conspiradores no golpe de 1964: o perdão e a conciliação nos leva a repetir a nossa (triste) história.

            Eu entendo que essa discussão tem o condão de trazer um incômodo em grande parte das pessoas, pois elas imaginam que rememorar significa o mesmo que não buscar a superação, quando é exatamente o oposto. Apenas podemos virar a página ao compreendermos os fatos e extrairmos deles as lições para evitarmos cair nos mesmos erros. Há também o falso entendimento de que a responsabilização e a reparação são formas de manter conflitos quando deveríamos buscar a “pacificação” e a “harmonia”. Ocorre que não se constrói uma sociedade harmônica empurrando para baixo do tapete os problemas e forçando uma conciliação que nunca ocorreu. Ainda há extermínio de povos indígenas, ainda há uma severa estratificação social por conta do racismo, populações marginalizadas continuam sob o controle do braço armado do estado, ainda há escravidão, a tortura de presos se disseminou nos presídios e membros das forças armadas ainda fazem ameaça de ruptura em plena luz do dia. Assistimos a agentes de segurança arremessarem um homem de uma ponte e um outro executar com 11 tiros um rapaz pelo crime de furtar produtos de limpeza. Naturalizamos o horror para não ter de cumprir o dever cívico de reconhecer nossa história, repleta de violência desde a sua fundação.

            Há, ainda, outro erro comum que surge no debate sobre o Dia da Consciência Negra: a ideia de que precisamos de uma “consciência humana”, que olhe e valorize igualmente qualquer pessoa, independentemente de raça, cor, credo ou origem. Apesar de bem-intencionada, essa ideia é enganosa ao equiparar pessoas que lutam contra a desumanização com aquelas que têm prontamente sua cidadania e direitos garantidos. As estatísticas mostram que não são predominantemente as pessoas de origem asiática, europeia ou árabe que sofrem cotidianamente os abusos policiais, a execução sumária, as prisões preventivas que se arrastam por anos sem julgamento, o subemprego, a indigência e falta de condições dignas de vida.

Ademais, nenhum grupo conquistou direitos defendendo “consciência humana”, basta imaginar como seria cômico imaginar que os judeus, grupo vitimizado pelo holocausto, defendessem no pós-guerra os direitos de dignidade, autodeterminação e liberdade não para si próprios apenas, mas para os alemães, colaboradores ou não do extermínio. Ou se os oficiais fossem perdoados em nome da pacificação e de “virar a página”. Claro que devemos olhar para todos os flagelados, independentemente de sua origem, mas sem com isso esconder que há grupos mais vulneráveis e que isso se dá pelo persistente racismo em nossa sociedade.    

Pedro Rodrigues Sousa da Cruz

Professor e pesquisador do IFPR União da Vitória, graduado em Biologia e doutor em Genética Humana pela UNICAMP, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas/IFPR, capoeirista da Casa Avuô e integrante do grupo de percussão Maracá.

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Capoeira

Não sou originário da região do Vale do Iguaçu, mas venho de terras longínquas, nasci em Belém do Pará e me criei em São Paulo. E nestes dois anos vivendo nas Gêmeas, aprendi muito sobre mim mesmo. E há aí um elemento essencial nesse processo de aprendizado: a capoeira. É graças a ela e por meio dela que tenho achado meus caminhos. É essa manifestação popular que dá significado à minha vinda para o Paraná, que encontrei ao começar a dar aula de capoeira e aprofundar meus estudos sobre a riqueza de saberes que ela contém.
Sempre fui bastante curioso e busquei aprender sobre diferentes áreas e, apesar de ser biólogo, meu diletantismo me fez um grande apreciador da política, sociologia e filosofia. Como boa parte dos professores, prossegui depois da graduação para a pós, participei de congressos, escrevi artigos científicos. Tive o imenso privilégio de dedicar grande parcela da minha vida aos estudos, me tornei pesquisador e me familiarizei com a produção de conhecimento sob a perspectiva da nossa era (ao menos no ocidente). Mas isso tudo não me ajudou a constituir a visão de mundo que tenho hoje, e que me permite me situar no mundo e entender um pouco mais sobre meu propósito. A filosofia da capoeira, que também está no jongo, reisados, congadas e expressões culturais diversas é a maior preciosidade que já encontrei até hoje. Um dos ensinamentos é passar para frente aquilo que se aprende com respeito e reverência aos que chegaram antes. E essa é a ideia da presente coluna.
É por conta desse preceito que dou aulas e ofereço oficinas nas escolas para compartilhar um pouco do que sei sobre a capoeira. Sofisticada demais para que se possa apreender seus significados em apenas um encontro, um texto ou numa conversa, ela também é poderosa o suficiente para mudar o rumo de uma vida apenas com um contato fugaz. Nos espaços em que abordo a capoeira, tento trazer reflexões que talvez sirvam para desencadear mudanças maiores naqueles que se sintam tocados. Aqui vou destacar alguns elementos centrais na capoeira que acredito serem cruciais. O uso do termo “crucial” aqui não é acidental, a palavra se origina de Instantia Crucis, plaquetas em forma de cruz que orientam quem passa por um cruzamento entre vias, ou seja, se encontra em uma encruzilhada.
A circularidade talvez seja um dos pilares mais importantes da capoeira. Presente na roda, no canto e na movimentação, ela apresenta outra visão sobre a nossa existência. Enquanto o pensamento ocidental é linear, apegado à ideia de avanço, progresso e objetivo final; a circularidade é mais honesta e realista. A existência humana não é análoga aos capítulos de um livro ou episódios de uma série, mas opera muito mais como o próprio mundo e o que nele habita: ocorre em ciclos, estações que se repetem, idas e vindas. Às vezes se está por cima, em outras, por baixo; temos alternância entre alegrias e decepções e até a vida em si se repete: a começarmos indefesos e dependentes quando crianças, estado ao qual retornamos na idade avançada. Abandonar a ideia de linha reta, de que tudo é meio para um determinado fim, significa se libertar de uma avalanche de expectativas irreais e da prisão utilitarista em que nos encontramos.
Aqui entra outro grande saber: devemos sempre retornar para podemos avançar. Não existe futuro sem o resgate do passado. Sem consultar e reverenciar nossos predecessores, corremos o risco de nos vermos como elos soltos, quando na realidade estamos atados aos que vieram antes. Por isso que a cultura popular que vem da diáspora africana é tão firmemente ligada aos antepassados. Derivada do conceito de circularidade, o culto à ancestralidade implica que o passado em si não passa, mas permanece como parte de nós. Em um mundo voltado cegamente para o futuro, ficamos mutilados dessa parte e perdemos a referência de nós mesmos ao acharmos que a constituição do nosso “eu” está separada do “nós”. É fácil de ver o quanto, na capoeira, há repetidas referências aos mais velhos, os mestres, os pais, os anciãos – e essa é a mensagem sendo passada, por sinal, entre gerações.
Assim como nossa existência está atada aos que vieram antes, ela também está ligada aos nossos semelhantes vivos. Na roda há claramente participação e diálogo entre todos os envolvidos. Seja cantando, tocando, jogando ou batendo palma, todos são pertencentes. E o diálogo, na forma de proposição e resposta, é perceptível no jogo, no canto, nos instrumentos e entre esses constituintes. O berimbau “conversa” com a voz e também com o pandeiro, e toda a percussão dialoga com o jogo, que também influencia no canto. Esses diálogos que se dão de maneira concomitante carregam um propósito: unir partes num todo muito mais poderoso que a simples soma dos indivíduos. Em outras palavras, “eu sou porque nós somos”. A coletividade seja talvez uma das mais subversivas mensagens da capoeira, o que a fez ser muito perseguida e ainda hoje temida. Se todos experimentassem esse senso de integração e comunhão, seríamos muito menos sujeitos à exploração e à manipulação.
Enfim, a capoeira é uma arma que protege seu povo não apenas fisicamente, mas também espiritualmente, emocionalmente, psicologicamente. E isso faz dela muito mais transformadora e contundente do que outra arte marcial.

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Estamos ficando doidos?

Venho esses tempos percebendo como a disfuncionalidade se tornou o padrão da nossa sociedade. Explico. Procure se lembrar de quantas pessoas conhece que estão tratando algum transtorno como ansiedade generalizada, burnout ou depressão. Certamente conseguiu lembrar de algumas, certo? E quantas, em tratamento ou não, apresentam as mais diversas dependências, seja por álcool ou outras drogas, pornografia, jogos, compras e/ou uso excessivo de celular? Pode bem ser que você mesmo se identifique com alguns desses padrões. Imagine, agora, se considerarmos quantos de nós enfrentamos disfunções subclínicas, como síndrome do impostor (transtorno em que a pessoa acometida se sente incapaz, duvida das próprias habilidades e atribui suas conquistas à sorte), senso de desconexão com as outras pessoas, cansaço crônico, problemas de libido? Se você não se identifica com nada descrito acima, parabéns, você talvez seja a última pessoa plena na face da Terra.
É claro que tais moléstias não são em si novas, nos acompanham há muito tempo em variadas formas. Aliás, em alguns casos há predisposição genética, e seria um grande erro atribuir prevalência apenas às condições de vida. E há algo de extremamente positivo no fenômeno de agora enxergarmos tantos casos ao nosso redor: há, enfim, maior conscientização, compreensão, busca por tratamento e diversas abordagens terapêuticas. Para exemplificar de uma forma anedótica, é comum ler em perfis de aplicativos de namoro o atributo “terapia em dia” como selo de qualidade. Em alguns círculos sociais, fazer psicoterapia é visto como imperativo moral, um dever cívico e uma condição básica para o convívio em sociedade. Se talvez aqui a ideia seja um pouco exagerada, é um grande avanço em relação à noção, cada vez mais arcaica, que terapia é coisa de quem perdeu a sanidade – de “loucos”. De fato, já fiz psicoterapia e acredito que todos devam passar pela experiência, ao menos de tempos em tempos, da mesma forma como fazemos checkup, exames de rotina e vamos ao dentista para evitar que algum problema mais grave se instale. Porque, afinal, a saúde mental é tão importante quanto à física – e está intimamente vinculada a esta.
Faz parte ainda do mesmo fenômeno a busca por outras formas de autoconhecimento e superação de traumas, sejam formas sérias como a já citada psicanálise, bem como Thai Chi, arteterapia ou filosofia. Sim, a filosofia, tanto ocidental quanto oriental, carrega incontáveis reflexões sobre o fardo da existência terrena e como lidar com ele. Ilustro com algo muito concreto – existe uma febre sobre o estoicismo, a ponto de estampar a capa da revista Superinteressante recentemente. E há, claro, as formas mais duvidosas de buscar maior consciência sobre si, como constelação familiar, eneagrama, programação neurolinguística e as “técnicas” de uma infinidade de coachs que enriquecem à base das inseguranças e vulnerabilidades alheias. No meio do caminho há teorias sérias que foram sendo desfiguradas, como o sistema MBTI e a pirâmide de Maslow.
Um dos maiores escritores de todos os tempos, Machado de Assis, elabora uma tese em 1882 a respeito de sanidade mental no primoroso livro intitulado “O Alienista”. Não vou estragar a leitura de quem ainda não se deu a esse deleite, mas faço conjectura correlata: pode ser que o que convencionamos chamar de “disfunção” ou “transtorno” bem sejam a condição padrão do ser humano, dada sua frequência. De perto ninguém é normal. Mas me assombra uma outra hipótese do que essa acima, talvez estejamos, sim, diante de uma pandemia global de desregulação de um suposto equilíbrio psicoemocional. Corroboram para essa visão mais pessimista o fato de que a ansiedade, por exemplo, não se distribui de maneira homogênea nem geograficamente, nem entre classes socioeconômicas, nem entre gêneros e sequer entre diferentes faixas etárias.
Em um artigo de 2021 publicado no periódico científico “Epidemiology and Psychiatric Sciences”, Yang e colegas analisaram dados de 204 países e identificaram um aumento geral na incidência de ansiedade no período entre 1990 e 20191, e identificaram mulheres, adolescentes e pessoas em condição de vulnerabilidade social como grupos de risco. Do ponto de vista regional, países do centro do sistema capitalista (Estados Unidos, Canadá, Europa ocidental e Austrália) possuem as taxas mais altas, talvez por maior abordagem midiática e acesso a diagnóstico. Chama atenção, porém, que países da periferia do sistema, como os da América Latina, tenham taxas próximas aos países do centro. O Brasil, por exemplo, é a nação mais ansiosa do mundo, com taxas altíssimas de incidência. Há, portanto, mais fatores a serem considerados que apenas informação, acesso aos serviços de saúde e métodos mais efetivos de identificação. Existe uma dimensão social que não está sendo devidamente considerada.
É possível que exista aí uma relação com uma sociedade voltada para o individualismo extremo, em que a vaidade é incentivada por meio das redes sociais, em que os laços de confiança são deteriorados em favor da competição constante, em que os padrões de beleza e sucesso são cada vez mais inalcançáveis, a noção de reconhecimento se dê pelo consumo e não por integração social, a cobrança por produtividade é desumana e em que a renda atinge níveis estratosféricos de concentração. Quem sabe estejamos errando ao buscar apenas saídas individuais (terapia, meditação, etc) para um problema coletivo. Quiçá o tratamento para esse mal passa por nos reconectarmos, buscarmos reconstruir relações sociais que foram se perdendo. Acredito que não exista nada mais subversivo que nos aproximarmos enquanto iguais. Pode ser em associações de bairro, cooperativas, clubes de afinidade, sindicatos, grupo musical, grêmio e outras organizações. E renunciarmos ao ímpeto de superar os demais, mas incluir nosso próximo, estar junto aos nossos semelhantes sem a busca por protagonismo individual, mas compreendendo que a felicidade apenas é real quando compartilhada.

  1. Yang, X., Fang, Y., Chen, H., Zhang, T., Yin, X., Man, J., Yang, L., & Lu, M. (2021). Global, regional and national burden of anxiety disorders from 1990 to 2019: results from the Global Burden of Disease Study 2019. Epidemiology and Psychiatric Sciences, 30. https://doi.org/10.1017/s2045796021000275

Pedro Rodrigues Sousa da Cruz
Professor e pesquisador do IFPR União da Vitória, graduado em Biologia e doutor em Genética Humana pela UNICAMP, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas/IFPR, capoeirista da Casa Avuô e integrante do grupo de percussão Maracá.

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