COISAS DA BOLA
Por trás de um chute no capotão…

Prenunciando o que aconteceria nas arquibancadas do já lendário Estádio da Caixa D’água, a fuzarca já começou no sábado que antecedeu ao prélio. Vários torcedores iguaçuanos, raiz, soltavam rojões noite e madrugada adentro, onde a embaixada do rubro-negro da capital estava hospedada. A boleirada não pregou os olhos. As provocações passaram para o lado dos diretores dos dois Clubes que, em frente a uma bocada boêmia, quase foram às vias de fato. Só não deu um enfrentamento corporal porque o diretor do esquadrão curitibano pipocou e saiu na correria. Também um veículo Corcel, quase novo, ano 1970, que circulava buzinando pelos centros das cidades de Porto União e União da Vitória com um pendão atleticano, teve a sua antena quebrada e a bandeira arrancada e esgaçada.
Como o esperado, o clima estava ardendo. A rivalidade fora para as arquibancadas. Ambas torcidas trocavam, desde palavras das mais cabeludas até arremessos de frutas e ovos. De tanta ojeriza dos lados, antes mesmo da “moganga” rolar no relvado, um fanático atleticano foi cuspido da parte superior da arquibancada. Rolou por cima das cabeças daquele mar de gente quando o pau descambou. Estatelou-se no chão frente ao alambrado apinhado. Ali tinha virado a uma quase guerra, mas que foi contida pelo policiamento e por um pelotão de soldados do exército requisitado às pressas.
As arquibancadas e alambrados estavam estourando de assistência, até uma pulga encontraria dificuldades em se ajeitar para assistir aquele esperado espetáculo de bola, que seria o primeiro a criar a grande rivalidade entre os torcedores do Iguaçu e do Clube Atlético Paranaense, comprovada nos anos vindouros, inclusive com vários feridos e uma morte. Muitas bandeiras tremulavam, pois nunca antes, tanto povo se reuniu proporcionando um recorde de renda. Foi uma festa digna de ser apreciada, mas que deixou marcas, também no lombo de alguns.
Mal acomodados naquela parte das arquibancadas recém-construídas para aquele certame-debute, uma família de desportistas pertencentes ao proletariado chegara cedo ao Estádio. O pai, a mãe e os três filhos indo para a juventude encontraram dificuldades na portaria de acesso. O porteiro insistia em não os deixar adentrar carregando a cesta com frutas e alimentos. Depois do baita sururu e do tempo perdido, o porteiro, orientado, autorizou o acesso daquela família. Já dentro, o pai e a mãe, nervosos, procuravam conseguir um bom lugar e ver pela vez primeira um prélio entre chutadores profissionais. Mas levaram azar danado, o estádio já estava parecendo um formigueiro. Foram obrigados a se sentarem no aperto, no único lugar encontrado, no segundo degrau, que ficava bem próximo dos alambrados. Trazendo uma cesta cheia de frutas e uma volta de chouriço de porco, com sangue pisado, para forrar a barriga e suportar toda aquela tarde assistindo futebol, se acomodaram por ali mesmo. Não viam a hora de testemunharem o fragor da disputa.
Ouviu-se o referee. O balão de couro, enfim foi chutado dentro do palco verde. Um verdadeiro tapete. Entre vaias e muita gritaria os contendores peleavam pelo domínio da pelota como se ela fosse um prato de boia. O extrema-direita do Furacão, cabeludo e baixinho, liso igual a um bagre, rápido como um falcão-peregrino, comia a bola e dava show. Armava uma fumaceira para cima do beque iguaçuano. O que ele fazia com a peca era até de se duvidar. Parecia que tinha ela amarrada nos pés, não lhe fugia. Passava de roldão pelo beque – como queria – e dava risadas com o focinho virado para as arquibancadas. Ouvia xingamentos, mas não dava pelotas. Em um lance quando foi pegar o balão que saíra à lateral, bem em frente daquela família de torcedores, teve um caqui-café arremessado contra si. Não se fez de rogado. Jogando beijinhos, pisou com a chanca naquela fruta e tirando as sementes, sem rodeios, à várias dentadas, engoliu bonito.
Aquilo foi considerado como uma ofensa ao jovem autor do arremesso. Aquele ato ia dar o que falar. Soltando fumaça pelas ventas, fervendo por dentro, com mais raiva, aquele jovem torcedor atirou uma baita mexerica em direção ao corpo do ponteiro. Errou. Quando a pelota novamente saíra em lateral, o dianteiro nanico, apanhou e descascou a mexerica, e na ligeireza consumiu os gomos. Jogou mais beijinhos para a torcida e continuou dando um passeio no seu marcador. Pela sua atuação, ele merecia até que uma medalha fosse cunhada com seu nome.
Diferente do resultado esperado, aqueles torcedores em vez de hostilizá-lo mais, começaram a bater palmas quando ele fazia “gato e sapato” do beque. Começaram a gritar “olé”, “olé”. O coach, pressionado pelo reserva da posição, mandou aquele beque para a cerca – entrou o regra três para acabar com o baile dado por aquele extrema nanico. Ele jurou para o treinador, que ia aparar no meio o pontinha caipora. Não conseguiu cumprir a jura. Também foi mais um a ficar nas saudades. De cara, levou um esticão de bola no costado e viu o ponteiro como um The Flash. Comeu pó. Virou carne de canhão, quando o ponteiro fez um vai-mas-não-vai e quase trincou a sua espinha. Perdido, não sabia nem a cor do balão, só empapou a camisa. Aprendeu facilzinho, que o homem só vê o seu destino depois que tira o último véu. Depois daquela dança, aquele beque desistiu da vida na bola. Jogou as chuteiras na sarjeta. Foi trabalhar de pedreiro “meia cuié”.
Ao fim da peleja, com o quadro iguaçuano “tomando de quatro”, o jovem arremessador do caqui e da mexerica, com o seu peito de “sabiá” grudado ao alambrado, travou uma prosa com o baixinho e escorregadio extrema atleticano. Pediu-lhe a camisa. Se desculpando diante da impossibilidade em dar o manto, o atacante se justificou que não poderia fazê-lo, pois teria que usá-lo mais vezes no certame. Seu Clube vinha passando por dificuldades monetárias. Até o salário por vezes atrasava. Mas, assinou, como autógrafo, em um guardanapo de pano que estava na cesta de frutas do torcedor.
Nos tempos atuais, aquele pano está guardado dentro de um vidro de compota, lacrado, como relíquia e que comprova um tanto da história aqui contada.
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COISAS DA BOLA
Da inocência para o mundo cão

Ele tinha 17 anos, ela 16. Sempre que ele saía do treino, em frente da casa ela o esperava passar. Do outro lado da rua ele sorria, mas tinha receio de puxar uma prosa. Ela, espivetada, cansou de só ficar olhando. Puxou papo:
– Está com medo de mim?
Tímido. Criando coragem não sabe de onde, ele se achegou e proseou:
– Sim, tenho medo – nunca conversei com uma moça do teu naipe.
Pegou a mão direita dela, e com delicadeza beijou. Ela vermelhou toda. Ele sentiu ela tremer. Ela deu um beijo na bochecha dele. Emocionado, ele tremeu na base. E, foi desse jeito, que ataram um namoro.
Todo dia após o treino do esquadrão profissional, ela estava na frente de casa esperando por ele. Suspirava ansiosa quando ele demorava. Ele não via a hora de estar com ela. Ocultos por detrás do portão roubavam beijos. Os arroubos da juventude afloravam. A libido dele ia para a copa dos paus. Ela se umedecia nas partes íntimas.
Já não aguentavam aqueles encontros furtivos atrás do portão. Começaram a se encontrar num paiolzinho nos fundos da casa dela. O pai não queria de jeito nenhum que ela namorasse. Ela era nova de tudo. Namorar com um boleiro, jamais. O pai sempre estava de botuca, mas era logrado. Quando ia trabalhar, o namorico deles pegava fogo naquele paiol, mas não iam além de umas poucas bulinações.
O prélio pelo paranaense seria em Bandeirantes, contra o União. Na famosa Vila Maria. Viajando durante nove horas, ele matava a saudade ouvindo as músicas românticas nas fitas cassete que ela lhe emprestara junto com o seu gravador. Nessa viagem ele atinara. Estava perdidamente apaixonado. Na volta, ficaria nas barbas com o “sogro” e pediria para namorar de forma oficial. Se ele não deixasse, roubaria a filha.
A volta era muito esperada. Venceram o cotejo por um a zero. Ele fez o tento bimbando uma falta. Mais nove horas de viagem. Noite toda. Ele muito feliz e com saudades dela. O consolo foi ouvir as músicas românticas. Seis horas da manhã aportaram na Sede do esquadrão. Ele dormiu no colchão sobre um beliche até meio dia. De banho tomado, roupa nos trinques, recendendo desodorante Avanço, do lado do alojamentobombiava e esperava que o pai dela fosse trabalhar. Enfim! Ele foi. Na correria foi até lá. Pela primeira vez ela lhe abriu a porta da casa. Ele entrou afoitamente. Entre beijos e abraços, passou uma rasteira e ela se estirou ao chão. Ajeitou o couro no terreno e se preparou para atirar forte. Em cima dela. Beijos, beijos e mais beijos. Ele, ávido, rasgou aquela blusinha fina, retirou o sutiã e com a cabeça entre aqueles enormes seios, ora em um, ora em outro, chegou a revirar os olhos de tanto sugar.
Desconfiado, naquele dia, o pai fez que foi e, não foi trabalhar. Dando uma de “Migué”, lá na esquina ficou na espreita. Para sua própria desgraça armou um flagra. O que veria, nunca imaginou, talvez um futuro genro, “bezerrão”. Irado, enquanto correu para apanhar o machado lá no paiolzinho, o ex-futuro genro escafedeu-se, ouvindo que era um piá de bosta com os dias contados.
O caminho deixou de ser pela frente da casa dela. Recebeu de volta todas as cartas perfumadas escritas para ela. Junto na bolsa, veio um bilhete alertando-o. A par do flagrante, o irmão dela, um louco varrido, junto com um bando iriam canchá-lo de pau. Que se cuidasse. Ele se armou. Começou a andar berrado. Dando uma desculpa esfarrapada, emprestara de um amigo polícia um 38 de marca Schmidt. Andava com aquele caga-fogo escondido na parte detrás da cintura.
Armados de porretes, o bando lhe cercou. Quando foram lhe atacar, fez aquele trabuco cuspir fogo. Criou um rebuliço. Foi uma correria daquela turma. Nunca mais o importunaram. Mas, perdera de vez a namorada. Com muitas saudades, para conter o sofrimento, dentro da sua patente, vivia fazendo dedicação para ela usando os “cinco contra um”, imaginando estar sugando as suas enormes e duras tetas.
Sabedor que ela estava de mira com um grã-fino, com um calorão na testa começou a frequentar um balcão. Um amigo de paleta vendo a sua sofrência, convidou-o para ir junto em um casamento. Após emprestar um paletó, de peru, apareceu na festa do casório. Viu uma moça a fitá-lo. Com uns goles a mais, ele virou um poeta. Encantou-a e se encantou com ela. Ali, acabara de conhecer um grande amor da sua vida, não para todo o sempre, pois o para sempre não existe, um dia vira fumaça.
COISAS DA BOLA
A difícil peleia para se aposentar

Do escritor da periferia – Craque Kiko.
Perícia daqui e perícia de lá. Ele estava sendo julgado insano. Era mais um encostado pela previdência social. Voltar a trabalhar estava fora dos seus planos, nem a “pau juvenal”. Queria ser aposentado a qualquer custo.
A nova perícia estava próxima. Um dia antes, ele tomava uns goles de pinga misturada com pólvora. Juntos nessa mistura, dois comprimidos para dormir. Seu corpo começava a demonstrar que estava com algum mal. Seu coração parece que ia sair do peito. Tremeliques e palavras desconexas. Já fora da casinha, novamente ele circulava pelado pelo pátio do prédio. Imaginando ter nas mãos uma “maquina” de procurar ouro, afirmava que o fundo da fossa estava repleto dele. Aos gritos e plantando bananeira com o fiofó virado para a lua, ele via novamente a ambulância chegar para atendê-lo.
Famoso pelo ato, já era conhecido dos enfermeiros. Obedecia-os, e dentro da Van seguiam para a UPA dando risadas. Cara a cara com o médico de plantão, armava um banzé. Um sossega leão na veia levava-o ao sono tranquilizante. Um internamento era inevitável. Após dias, medicado, recebia alta hospitalar. A sua pretendida aposentadoria por invalidez, imaginava, caminhava a passos largos. Logo, logo pintaria. Voltar para o trampo, nem por misericórdia. Mas, eis, que, como um aborto da natureza, a sua cura apareceu do nada quando foi enviado para um sanatório.
Em uma noite, um dos plantonistas daquela casa para loucos não aguentando a fuzarca armada pelo pretendente à aposentadoria, resolveu ir para forra. Enquanto o interno dormia anestesiado o sono dos loucos, socou-lhe papel higiênico na boca e nos dois ouvidos. Também, com o interno deitado e amarrado na cama com a "busanfa" para cima, o enfermeiro tirou-lhe as pregas. Deflorou-o e gostou do ato. Toda noite o fato se repetia, mesmo com o interno acordado. Indefeso, só lhe restava chorar em silêncio. Algumas vezes reclamava, só que ninguém acreditava em suas palavras. Não aguentando mais aquelas sevícias, o louco de araque começou a se comportar. Melhorou do dia para a noite. Logo ganhou alta. Voltou a trabalhar no seu serviço público, mas lhe doía o botuqueiro quando entregava cartas sentado no selim de uma bicicleta.
Depois de anos, a sua tão esperada aposentadoria veio, não por invalidez, mas por tempo de serviço. Infelizmente ficara com sequelas - um de seus ouvidos ficou surdo e o seu fiote estava alargado. Só de imaginar em ouvir a palavra sanatório, ficava pianinho, e se escondia embaixo da cama. Quando encontrava aquele enfermeiro do sanatório, que virara seu vizinho de porta, suas vistas transbordavam em lágrimas.
Uma tarde para não se esquecer
Do escritor da periferia – Craque Kiko.
Um frio do capeta. Lá fora o vento ainda fraco, mas longe de ser somente uma brisa, balançava os pequenos galhos das duas pequenas palmeiras nos extremos do meu pequeno jardim retangular. O Sol há dias tinha deixado de nos visitar. Eu, parado frente da janela do meu museu-estúdio, olhava lá para fora querendo entender porque o Dom Bilu não parava de latir no grande portão. Naquela hora, ele deveria estar ninando dentro da sua casinha, lá nos fundos da garagem. De onde eu estava, só conseguia visualizar a metade do portão. Querendo descobrir o porquê da tamanha latição, colocando o chapéu, sai pela porta dos fundos e marquei presença junto dele na frente do dito portão. Descobri o motivo, e esquecendo o dia cinzento, frio e neblinoso, abri um enorme sorriso.
O motivo era justo e merecia aquele ganiçar, desde que fosse uma declaração de amor ou um elogio para ela. A cadelinha era linda, igual a sua dona que a segurava por uma pequena corda. A dona da, quem sabe futura namorada do Dom Bilu, foi-se dali levando a cachorrinha. Dom Bilu se acalmou, saiu na correria até a garagem lá no fundo do pátio e voltou trazendo na boca, aquele pedaço de dinossauro de borracha já meio esgaceado. Entendi de cara o que ele desejava. Então, jogando aquele toco de dinossauro da frente do portão até os fundos do pátio, cerca de 35 metros, iniciamos o preparo físico dele. Eu arremessava o pedaço daquele réptil, ele saía na correria, apanhava e trazia até mim. E, assim, após vinte arremessos, com ele já colocando a língua de fora, encerramos os trabalhos.
Para me recuperar, já sentado no banco do pergolado lá no fundo do quintal, enquanto eu bebia um café na xícara do Vasco, o Dom Bilu sentado ao meu lado, salgava o peito com uma iguaria feita pela minha esposa. A cada gole daquele café quente e gostoso, encarando o cãozinho, que também me encarava após uma dentada ou outra naquela perna de galinha, nós dirigíamos o nosso olhar lá para o portão da frente. O Dom Bilu na ânsia que aquela cachorrinha retornasse, e eu, esperando uma caminhonete de lenha picada, que recém tinha encomendado.
COISAS DA BOLA
A vida é uma aventura – conta o homem do capote preto e chapéu afundado na cabeça

Ainda jovem de tudo ele teria que abandonar o seu sonho de ser um chutador de bola profissional. Em um cotejo tinham lhe quebrado a canela. Sonhava em se recuperar logo. Ansiava por voltar aos gramados. Muitos diziam que ele já era como jogador de futebol. Mas, não perdeu a esperança. Se agarrou a tudo e a todos os santos. Rezas, promessas e muitos sacrifícios fez. De nada adiantou. Estava próximo de uma amputação.
Desanimado, com sua cadeira de rodas motorizada chegou em uma das passarelas ao lado da Ponte dos Arcos. Com a feição banhada em lágrimas, olhava aquelas águas descendo rapidamente no rio já saindo da caixa pelas chuvas abundantes da época. Pularia, nada lhe restava. Era muita dor, não só do corpo físico, mas do coração e da alma profunda. Daria cabo na sua existência.
Próximo de se pinchar nas águas, escutou alguém lhe cumprimentar e puxar prosa. Aquele desconhecido, vestido com um capote preto que ia além joelhos e com um chapéu afundado na cabeça lhe inspirou confiança. Abriu a guarda e travaram uma prosa de horas. A par da sofrência do jovem, aquele homem do capote preto lhe disse que ele tinha procurado a ajuda nos santos errados. Era para se apegar com o Padim Ciço. Era só oferecer uma paga, pedir com fé, que o atendimento viria, mas teria que cumprir o prometido, garantiu o capotudo. O jovem pediu com muita fé. Em poucos meses estava atuando em um palco verde como se nada lhe tivesse acontecido. Procurou o homem do capote preto para agradecer-lhe pela indicação do santo Padim. Nem sombra dele. Mas, teria que pagar o prometido. Na primeira deixa, rumou ao Nordeste, para os cantos do Ceará, no Juazeiro do Norte.
Em uma semana por aqueles cantos, conheceu uma jovem. Ficou cismado com ela, e ela com ele. Sentiram atração um pelo outro. Papearam. Se encontraram duas vezes. Confidenciou sua vida para ela. Ela só disse se chamar Nundia. No terceiro encontro, entre muitas trocas de afagos, nos fundos de um cemitério que ficava ao lado de uma pequena igreja, bem embaixo de uma árvore, quando a tarde caía, com uma febre de curiosidades ela viu ele abrir o fecho da braguilha e tirar o “bicho” para fora. Tiveram uma junção carnal. Pensou ele, que pelo sangue escorrido, ela deveria estar com o “boi”. No fim do ato, assustada com a sangueira ela saiu em uma correria e ele nunca mais a viu. Procurou-a como se procura uma agulha num palheiro. Nada, nem sombra dela. Promessa paga ao Padim, ele, então, rumou de volta para o Sul.
Por quarenta e um anos a vida lhe sorriu. Ele, cidadão respeitado, bem de bolso, viúvo, nunca teve filhos, sozinho no mundo, de vez em quando antes da hora do almoço tomava umas e outras no bar muito frequentado pelos amantes do futebol. Com o bar quase vazio, sentado em uma pequena mesa lá no fundo, lendo a última edição do Jornal Caiçara, ele recebeu a notícia do dono do bar, que um homem o estava procurando para uma prosa. Sorrindo, o dono do bar disse que o papo deveria ser importante, pois o fulano parecia ser um sósia seu.
Meu nome é igual ao seu, Bonifácio. Sou seu filho. Só vim lhe procurar porque prometi para minha mãe em seu leito de finação. Ela me fez ver, que você, se estivesse vivo ainda, mereceria saber. Não procuro o seu reconhecimento de pai. Tinha curiosidade em lhe conhecer. E, só estou lhe dando a notícia. Mesmo sentado, o chão pareceu lhe fugir. Recuperado, Bonifácio pai ouviu todo o relato do dito Bonifácio filho. Ele contou em detalhes como foi o encontro do presumido pai Bonifácio e sua mãe Nundia. A veracidade dos detalhes sobre a cópula embaixo da árvore no fundo do cemitério, do sangue escorrido pelas pernas, não por ela estar com o “boi”, mas porque foi deflorada, a primeira e única relação que teve com um homem, atestavam que o relatado não era mentiroso.
Como se estivesse pregado na cadeira, estático ali, Bonifácio pai matutou demoradamente. Nunca tinha falado com ninguém sobre aquela aventura no Nordeste, muito menos com sua amada e finada esposa. Incrédulo, sensível e emotivo que ficara com a idade, chorou de balde. Ainda assim, um exame de DNA foi feito. Por ser desconfiado, o exame foi feito em dois laboratórios diferentes. Hoje em dia, pai e filho, focinho um do outro, são vistos por aí nos vários campos de futebol. Muitas vezes, atrás das goleiras enxergam a sombra do homem de capote preto e chapéu afundado na cabeça. Vendo os dois Bonifácios, ele parece escancarar um sorriso de contentamento.
A cabeça do porco
O esquadrão se chamava Pinguim. A turma se encontrava em um famoso bar no centro de Porto União. O time já estava afamado na região. Não só pelas peleadas dentro das quatro linhas. Fora também. Sua turma era boa de bola e de gole. Todos amigos de paletas, partilhavam alegrias e sacanagens, às muitas.
A excursão da hora seria para o meio Oeste catarinense, em Ibicaré. O busão, como sempre, apinhado. Sábado partiriam. Viagem de ida e volta, de noite. De dia, por lá, peleja e festanças.
Mais um triunfo, de goleada. Pós jogo, final da tarde e já boca da noite, naqueles cantos de Ibicaré, um torneio de truco era gritado. Mais um leitão no rolete fora assado para o jantar. Encheram a pança. O álcool dominava as cabeças. Alguém queria comer o miolo da cabeça do duroque. Ela tinha sumido. Deu sururu, mas ficou o dito pelo não contado. Dez da noite, hora de se despedir. Entre abraços e mais abraços de despedidas, a turma se acomodou no busão e, boas de volta.
Batuques e cantorias no retorno. Dentro da condução apareceu a cabeça do leitão. Fora feito uma sacanagem. Tinham roubado e colocado dentro da bolsa do arqueiro. Sujou de banha e graxa todos os seus apetrechos. Ele ficou possesso. Quem foi, quem foi? – Gritava e gritava, parecendo estar com o tinhoso no corpo. O motorista encostou o ônibus na beirada da rodovia, por azar, perto de um puteiro. O guarda-metas surrupiou as chaves do ônibus. Só devolvo se aparecer quem me fez a sacanagem, dizia aos brados. Gritos e mais gritos. Ninguém assumia a culpa. O ônibus palanqueado na costa da estrada. O goleiro pulou do busão, deu dois tiros para riba e se mandou. Foi para a casa das “damas da noite”. Mostrando o 22 bradava: – só fossem lá apanhar as chaves se aparecesse o autor.
O dia amanhecia, segunda-feira, todos dormindo nos bancos, menos dois, o Manchão e o Rolha, os autores da façanha. Foram os dois que tinham roubado a cabeça do porco e colocado na bolsa do golquíper. Se cagando de medo, eles tinham jurado segredo, cerraram os beiços.
O clima era de revolta quando o goleiro voltou da bocada. Ninguém ousou criticá-lo, afinal! Ele estava berrado. Cansado da furrupa, o guarda-metas entregou as chaves para o motorista. Com o trabalho da manhã perdido, lá pela uma da tarde deram o ar da graça na sua cidade. O acontecido ganhou asas, foi o comentário por semanas, mas aos poucos foi ficando no esquecimento, até ninguém mais se interessar em descobrir. Mas, tinha um quê! Quem fora o autor da sacanagem?
Por meio século seguiu a vida. Muitos daquele esquadrão que nem mais existe partiram para o outro lado da rua da existência. Os que ainda estão por aqui, ligados pela forte amizade, todo final do ano se reúnem para uma confraternização. Vem gente de todo canto deste país continente.
Alegres e com alguns goles a mais, muitas histórias são lembradas. E, a história da cabeça do porco veio a lume. Um vivente lembrou, e tentando pôr para fora aquele segredo, se livrar daquilo que ainda nos dias atuais o incomodava, com os olhos marejados, muito emocionado, confessou que foi um dos autores da sacanagem. Só contaria agora porque o coautor e o goleiro já foram embora há tempos.
Pedindo que o perdoassem pelo ato cometido, Rolha, em detalhes contou que ele e Manchão tinham roubado a cabeça do leitão e escondido na mala do goleiro. Rolha também contou que ele e o Manchão deram uma gorja para o assador para que ele não contasse para ninguém. Rolha disse mais, que o juramento entre ele e o Manchão, de boca cerrada, fora cumprido em vida. Completou, que agora, se sentia livre de um peso.