COISAS DA BOLA
Fragmentos de uma infância

Noite sim, e noite também, o compadre Ava e a comadre Landa rumavam até nossa casa para prosear, tomar um capilé e jogar um pife. Naquela noite, só apareceu a madrinha Landa. Justificou, que o marido Ava fora pescar com uma turma de amigos lá para as bandas do Rio Timbó. Pediu para minha mãe se o seu afilhado poderia dormir na sua casa. Tinha medo de dormir sozinha. E, lá fui eu, nos meus dez anos, cuidar da minha madrinha.
A casa dela, de madeira, ainda cheirando à construção recente, comprada de um senhor que morava na beira da antiga Linha Velha, rangia com a leve brisa daquela noite. Papai foi quem fez o transporte com seu velho caminhãozinho Ford F600. Tinha ajudado a desmontá-la e montá-la no lugar atual.
Deitadinho ao lado da madrinha, eu tentava não tossir pela grande quantidade de fumaça dentro daquele pequeno quarto de dormir. Com um canivete afiado igual ao fio de uma navalha, após, cortar o fumo macaio e enrolar em uma palha de milho, ela fumava um paieiro atrás do outro. Parecendo nervosa, deitada de pança para cima e fitando o vazio, resmungava e falava baixinho – o Ava me paga, ele mentiu para mim, não foi pescar coisa nenhuma, tem rabo de saia na jogada. Sem idade para entender o palavreado, eu só queria dormir para acordar logo cedo e armar a capa dali fugindo daquela fumaceira.
A noite já ia para a madrugada, e numa tosse após a outra, acordei. Vi a madrinha Landa roncando. As labaredas já tomavam conta. Gritei e gritei, assustado. Ela acordou. Só tivemos tempo de sair para fora. Tudo ardeu rapidamente. Sobraram ali as cinzas e as muitas lágrimas na feição da madrinha. Ela se ojerizou mais, quando no clarear do dia, o padrinho Ava chegou, e meio sem jeito, lhe entregou uma fieira de lambaris.
Uma mãe. Um filho.
Filho de mãe solteira. O pai, já finado, nunca quis saber dele. Era a mãe e o filho, sozinhos, um para o outro. Eram unha e carne. Se amavam muito. Nunca se largavam. Viviam, um em função do outro. Separados, morreriam. Por que, sem um ou outro, de que lhe valeria viver?
Aquela mãe fez até o impossível para criá-lo bem. Conseguiu que ele não fizesse nada que não fosse direito. Ele dera um rapaz estimado por todos. Na lida então! Se sobressaia. No final da tarde ela sempre o esperava no portão. Quando ela saía para algum afazer, ele não sossegava enquanto ela não chegasse. Ficava ansioso esperando-a. Não quis casar, pois uma nora poderia incomodar a mãe.
Nas vezes em que tomavam chimarrão ao rodar do Sol, sentados à frente da casa conversavam comprido. Ela confidenciava – se ele lhe faltasse, se mataria. Cortaria os pulsos. Ele a acalmava – jamais te deixarei amada mãe. Você é tudo o que eu tenho, quero e preciso. Sem você, não sei se terei forças para prosseguir na jornada. E, assim viviam felizes, um para o outro.
Naquele final de tarde de uma sexta-feira, chovia de bica. Relâmpagos e trovões no céu. Não estranhou ela não estar lhe esperando no portão. Pensou! Não quer se molhar. Entrou, tirou a roupa molhada… sentiu algo estranho no ar. Se arrepiou todo, teve medo. Onde estava a sua mãe? Se perguntou! Chamou, chamou, gritou, gritou e nada. Procurou-a nas peças da casa. Lá estava ela dentro da banheira, somente com a cabeça de fora, ainda com os olhos não revirados. Parecia lhe sorrir. Mas, tinha dormido seu definitivo sono, de parada cardíaca. O chão fugiu de seus pés, ele quase desmaiou. Doeu de montão, dor sem jeito de se medir.
Como de costume naquele chão, chamou uma funerária para providências. Não veio o rabecão, e sim, uma picape. Sentado na traseira, com um guarda-chuva, se protegia e protegia a morta, não conseguiu. O guarda-chuva voou devido excesso de velocidade. Numa freada inesperada, bateu a cabeça na janela traseira. Um galo enorme ficou visível na sua fachada. Era mais uma dor, somada ao desespero. O mundo parecia estar indo ao fim. Doía, doía, tanto, tanto, que pareceu que ele não resistiria. Resistiu.
Enfim, os trâmites transcorreram na normalidade. Não tinha vaga no cemitério. Teve que cremar o corpo. Menos mal, dentro daquele pote as cinzas ficariam na sala. Estariam junto dele. Agora era vida nova, tinha que se acostumar, conseguiria? Uma dor daquelas, curava-se somente com muito tempo. E, ele passara rápido, mas a saudade teimava em ficar ali. Não queria ir embora de jeito maneira. Como consolo vivia beijando aquele pote de cinzas.
O tempo passou e amainou a dor e a saudade. Era chegada a hora de desfazer-se das roupas e objetos dela. Encontrou em cada peça da casa, escondida em algum canto, uma gilete. Atinou, que era verdade o que ela sempre lhe falava, que se ele faltasse, se mataria cortando os pulsos. Chorou, chorou e chorou.
Mais tempo passou, arrumou uma namorada. Daquelas, linda de morrer. Se apaixonou de loucura. Juntou os trapos. Ela foi morar com ele.
Um dia, ao tirar o pó dos objetos na sala ela encontrou aquele pote cheio de cinzas. Jogou no vaso sanitário. Puxou a descarga. Foi a maior cagada que fez. Viu ao maior desespero a que ele foi, ao notar que o pote estava vazio. Conheceu o lado monstro dele. Com uma gilete daquelas da sua mãe, cortou os pulsos da companheira. Viu-a, agonizando, esvair-se. O assoalho ficou vermelho. De frente ao crime, ligou para os tiras. Sentado ao lado do corpo bebeu uma, duas, três pingas misturadas com pólvora. Fez o sinal da cruz e murmurou oração. Com a mesma gilete cortou a sua jugular. E, lá fora chovia novamente, água em bica…
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Da inocência para o mundo cão

Ele tinha 17 anos, ela 16. Sempre que ele saía do treino, em frente da casa ela o esperava passar. Do outro lado da rua ele sorria, mas tinha receio de puxar uma prosa. Ela, espivetada, cansou de só ficar olhando. Puxou papo:
– Está com medo de mim?
Tímido. Criando coragem não sabe de onde, ele se achegou e proseou:
– Sim, tenho medo – nunca conversei com uma moça do teu naipe.
Pegou a mão direita dela, e com delicadeza beijou. Ela vermelhou toda. Ele sentiu ela tremer. Ela deu um beijo na bochecha dele. Emocionado, ele tremeu na base. E, foi desse jeito, que ataram um namoro.
Todo dia após o treino do esquadrão profissional, ela estava na frente de casa esperando por ele. Suspirava ansiosa quando ele demorava. Ele não via a hora de estar com ela. Ocultos por detrás do portão roubavam beijos. Os arroubos da juventude afloravam. A libido dele ia para a copa dos paus. Ela se umedecia nas partes íntimas.
Já não aguentavam aqueles encontros furtivos atrás do portão. Começaram a se encontrar num paiolzinho nos fundos da casa dela. O pai não queria de jeito nenhum que ela namorasse. Ela era nova de tudo. Namorar com um boleiro, jamais. O pai sempre estava de botuca, mas era logrado. Quando ia trabalhar, o namorico deles pegava fogo naquele paiol, mas não iam além de umas poucas bulinações.
O prélio pelo paranaense seria em Bandeirantes, contra o União. Na famosa Vila Maria. Viajando durante nove horas, ele matava a saudade ouvindo as músicas românticas nas fitas cassete que ela lhe emprestara junto com o seu gravador. Nessa viagem ele atinara. Estava perdidamente apaixonado. Na volta, ficaria nas barbas com o “sogro” e pediria para namorar de forma oficial. Se ele não deixasse, roubaria a filha.
A volta era muito esperada. Venceram o cotejo por um a zero. Ele fez o tento bimbando uma falta. Mais nove horas de viagem. Noite toda. Ele muito feliz e com saudades dela. O consolo foi ouvir as músicas românticas. Seis horas da manhã aportaram na Sede do esquadrão. Ele dormiu no colchão sobre um beliche até meio dia. De banho tomado, roupa nos trinques, recendendo desodorante Avanço, do lado do alojamentobombiava e esperava que o pai dela fosse trabalhar. Enfim! Ele foi. Na correria foi até lá. Pela primeira vez ela lhe abriu a porta da casa. Ele entrou afoitamente. Entre beijos e abraços, passou uma rasteira e ela se estirou ao chão. Ajeitou o couro no terreno e se preparou para atirar forte. Em cima dela. Beijos, beijos e mais beijos. Ele, ávido, rasgou aquela blusinha fina, retirou o sutiã e com a cabeça entre aqueles enormes seios, ora em um, ora em outro, chegou a revirar os olhos de tanto sugar.
Desconfiado, naquele dia, o pai fez que foi e, não foi trabalhar. Dando uma de “Migué”, lá na esquina ficou na espreita. Para sua própria desgraça armou um flagra. O que veria, nunca imaginou, talvez um futuro genro, “bezerrão”. Irado, enquanto correu para apanhar o machado lá no paiolzinho, o ex-futuro genro escafedeu-se, ouvindo que era um piá de bosta com os dias contados.
O caminho deixou de ser pela frente da casa dela. Recebeu de volta todas as cartas perfumadas escritas para ela. Junto na bolsa, veio um bilhete alertando-o. A par do flagrante, o irmão dela, um louco varrido, junto com um bando iriam canchá-lo de pau. Que se cuidasse. Ele se armou. Começou a andar berrado. Dando uma desculpa esfarrapada, emprestara de um amigo polícia um 38 de marca Schmidt. Andava com aquele caga-fogo escondido na parte detrás da cintura.
Armados de porretes, o bando lhe cercou. Quando foram lhe atacar, fez aquele trabuco cuspir fogo. Criou um rebuliço. Foi uma correria daquela turma. Nunca mais o importunaram. Mas, perdera de vez a namorada. Com muitas saudades, para conter o sofrimento, dentro da sua patente, vivia fazendo dedicação para ela usando os “cinco contra um”, imaginando estar sugando as suas enormes e duras tetas.
Sabedor que ela estava de mira com um grã-fino, com um calorão na testa começou a frequentar um balcão. Um amigo de paleta vendo a sua sofrência, convidou-o para ir junto em um casamento. Após emprestar um paletó, de peru, apareceu na festa do casório. Viu uma moça a fitá-lo. Com uns goles a mais, ele virou um poeta. Encantou-a e se encantou com ela. Ali, acabara de conhecer um grande amor da sua vida, não para todo o sempre, pois o para sempre não existe, um dia vira fumaça.
COISAS DA BOLA
A difícil peleia para se aposentar

Do escritor da periferia – Craque Kiko.
Perícia daqui e perícia de lá. Ele estava sendo julgado insano. Era mais um encostado pela previdência social. Voltar a trabalhar estava fora dos seus planos, nem a “pau juvenal”. Queria ser aposentado a qualquer custo.
A nova perícia estava próxima. Um dia antes, ele tomava uns goles de pinga misturada com pólvora. Juntos nessa mistura, dois comprimidos para dormir. Seu corpo começava a demonstrar que estava com algum mal. Seu coração parece que ia sair do peito. Tremeliques e palavras desconexas. Já fora da casinha, novamente ele circulava pelado pelo pátio do prédio. Imaginando ter nas mãos uma “maquina” de procurar ouro, afirmava que o fundo da fossa estava repleto dele. Aos gritos e plantando bananeira com o fiofó virado para a lua, ele via novamente a ambulância chegar para atendê-lo.
Famoso pelo ato, já era conhecido dos enfermeiros. Obedecia-os, e dentro da Van seguiam para a UPA dando risadas. Cara a cara com o médico de plantão, armava um banzé. Um sossega leão na veia levava-o ao sono tranquilizante. Um internamento era inevitável. Após dias, medicado, recebia alta hospitalar. A sua pretendida aposentadoria por invalidez, imaginava, caminhava a passos largos. Logo, logo pintaria. Voltar para o trampo, nem por misericórdia. Mas, eis, que, como um aborto da natureza, a sua cura apareceu do nada quando foi enviado para um sanatório.
Em uma noite, um dos plantonistas daquela casa para loucos não aguentando a fuzarca armada pelo pretendente à aposentadoria, resolveu ir para forra. Enquanto o interno dormia anestesiado o sono dos loucos, socou-lhe papel higiênico na boca e nos dois ouvidos. Também, com o interno deitado e amarrado na cama com a "busanfa" para cima, o enfermeiro tirou-lhe as pregas. Deflorou-o e gostou do ato. Toda noite o fato se repetia, mesmo com o interno acordado. Indefeso, só lhe restava chorar em silêncio. Algumas vezes reclamava, só que ninguém acreditava em suas palavras. Não aguentando mais aquelas sevícias, o louco de araque começou a se comportar. Melhorou do dia para a noite. Logo ganhou alta. Voltou a trabalhar no seu serviço público, mas lhe doía o botuqueiro quando entregava cartas sentado no selim de uma bicicleta.
Depois de anos, a sua tão esperada aposentadoria veio, não por invalidez, mas por tempo de serviço. Infelizmente ficara com sequelas - um de seus ouvidos ficou surdo e o seu fiote estava alargado. Só de imaginar em ouvir a palavra sanatório, ficava pianinho, e se escondia embaixo da cama. Quando encontrava aquele enfermeiro do sanatório, que virara seu vizinho de porta, suas vistas transbordavam em lágrimas.
Uma tarde para não se esquecer
Do escritor da periferia – Craque Kiko.
Um frio do capeta. Lá fora o vento ainda fraco, mas longe de ser somente uma brisa, balançava os pequenos galhos das duas pequenas palmeiras nos extremos do meu pequeno jardim retangular. O Sol há dias tinha deixado de nos visitar. Eu, parado frente da janela do meu museu-estúdio, olhava lá para fora querendo entender porque o Dom Bilu não parava de latir no grande portão. Naquela hora, ele deveria estar ninando dentro da sua casinha, lá nos fundos da garagem. De onde eu estava, só conseguia visualizar a metade do portão. Querendo descobrir o porquê da tamanha latição, colocando o chapéu, sai pela porta dos fundos e marquei presença junto dele na frente do dito portão. Descobri o motivo, e esquecendo o dia cinzento, frio e neblinoso, abri um enorme sorriso.
O motivo era justo e merecia aquele ganiçar, desde que fosse uma declaração de amor ou um elogio para ela. A cadelinha era linda, igual a sua dona que a segurava por uma pequena corda. A dona da, quem sabe futura namorada do Dom Bilu, foi-se dali levando a cachorrinha. Dom Bilu se acalmou, saiu na correria até a garagem lá no fundo do pátio e voltou trazendo na boca, aquele pedaço de dinossauro de borracha já meio esgaceado. Entendi de cara o que ele desejava. Então, jogando aquele toco de dinossauro da frente do portão até os fundos do pátio, cerca de 35 metros, iniciamos o preparo físico dele. Eu arremessava o pedaço daquele réptil, ele saía na correria, apanhava e trazia até mim. E, assim, após vinte arremessos, com ele já colocando a língua de fora, encerramos os trabalhos.
Para me recuperar, já sentado no banco do pergolado lá no fundo do quintal, enquanto eu bebia um café na xícara do Vasco, o Dom Bilu sentado ao meu lado, salgava o peito com uma iguaria feita pela minha esposa. A cada gole daquele café quente e gostoso, encarando o cãozinho, que também me encarava após uma dentada ou outra naquela perna de galinha, nós dirigíamos o nosso olhar lá para o portão da frente. O Dom Bilu na ânsia que aquela cachorrinha retornasse, e eu, esperando uma caminhonete de lenha picada, que recém tinha encomendado.
COISAS DA BOLA
A vida é uma aventura – conta o homem do capote preto e chapéu afundado na cabeça

Ainda jovem de tudo ele teria que abandonar o seu sonho de ser um chutador de bola profissional. Em um cotejo tinham lhe quebrado a canela. Sonhava em se recuperar logo. Ansiava por voltar aos gramados. Muitos diziam que ele já era como jogador de futebol. Mas, não perdeu a esperança. Se agarrou a tudo e a todos os santos. Rezas, promessas e muitos sacrifícios fez. De nada adiantou. Estava próximo de uma amputação.
Desanimado, com sua cadeira de rodas motorizada chegou em uma das passarelas ao lado da Ponte dos Arcos. Com a feição banhada em lágrimas, olhava aquelas águas descendo rapidamente no rio já saindo da caixa pelas chuvas abundantes da época. Pularia, nada lhe restava. Era muita dor, não só do corpo físico, mas do coração e da alma profunda. Daria cabo na sua existência.
Próximo de se pinchar nas águas, escutou alguém lhe cumprimentar e puxar prosa. Aquele desconhecido, vestido com um capote preto que ia além joelhos e com um chapéu afundado na cabeça lhe inspirou confiança. Abriu a guarda e travaram uma prosa de horas. A par da sofrência do jovem, aquele homem do capote preto lhe disse que ele tinha procurado a ajuda nos santos errados. Era para se apegar com o Padim Ciço. Era só oferecer uma paga, pedir com fé, que o atendimento viria, mas teria que cumprir o prometido, garantiu o capotudo. O jovem pediu com muita fé. Em poucos meses estava atuando em um palco verde como se nada lhe tivesse acontecido. Procurou o homem do capote preto para agradecer-lhe pela indicação do santo Padim. Nem sombra dele. Mas, teria que pagar o prometido. Na primeira deixa, rumou ao Nordeste, para os cantos do Ceará, no Juazeiro do Norte.
Em uma semana por aqueles cantos, conheceu uma jovem. Ficou cismado com ela, e ela com ele. Sentiram atração um pelo outro. Papearam. Se encontraram duas vezes. Confidenciou sua vida para ela. Ela só disse se chamar Nundia. No terceiro encontro, entre muitas trocas de afagos, nos fundos de um cemitério que ficava ao lado de uma pequena igreja, bem embaixo de uma árvore, quando a tarde caía, com uma febre de curiosidades ela viu ele abrir o fecho da braguilha e tirar o “bicho” para fora. Tiveram uma junção carnal. Pensou ele, que pelo sangue escorrido, ela deveria estar com o “boi”. No fim do ato, assustada com a sangueira ela saiu em uma correria e ele nunca mais a viu. Procurou-a como se procura uma agulha num palheiro. Nada, nem sombra dela. Promessa paga ao Padim, ele, então, rumou de volta para o Sul.
Por quarenta e um anos a vida lhe sorriu. Ele, cidadão respeitado, bem de bolso, viúvo, nunca teve filhos, sozinho no mundo, de vez em quando antes da hora do almoço tomava umas e outras no bar muito frequentado pelos amantes do futebol. Com o bar quase vazio, sentado em uma pequena mesa lá no fundo, lendo a última edição do Jornal Caiçara, ele recebeu a notícia do dono do bar, que um homem o estava procurando para uma prosa. Sorrindo, o dono do bar disse que o papo deveria ser importante, pois o fulano parecia ser um sósia seu.
Meu nome é igual ao seu, Bonifácio. Sou seu filho. Só vim lhe procurar porque prometi para minha mãe em seu leito de finação. Ela me fez ver, que você, se estivesse vivo ainda, mereceria saber. Não procuro o seu reconhecimento de pai. Tinha curiosidade em lhe conhecer. E, só estou lhe dando a notícia. Mesmo sentado, o chão pareceu lhe fugir. Recuperado, Bonifácio pai ouviu todo o relato do dito Bonifácio filho. Ele contou em detalhes como foi o encontro do presumido pai Bonifácio e sua mãe Nundia. A veracidade dos detalhes sobre a cópula embaixo da árvore no fundo do cemitério, do sangue escorrido pelas pernas, não por ela estar com o “boi”, mas porque foi deflorada, a primeira e única relação que teve com um homem, atestavam que o relatado não era mentiroso.
Como se estivesse pregado na cadeira, estático ali, Bonifácio pai matutou demoradamente. Nunca tinha falado com ninguém sobre aquela aventura no Nordeste, muito menos com sua amada e finada esposa. Incrédulo, sensível e emotivo que ficara com a idade, chorou de balde. Ainda assim, um exame de DNA foi feito. Por ser desconfiado, o exame foi feito em dois laboratórios diferentes. Hoje em dia, pai e filho, focinho um do outro, são vistos por aí nos vários campos de futebol. Muitas vezes, atrás das goleiras enxergam a sombra do homem de capote preto e chapéu afundado na cabeça. Vendo os dois Bonifácios, ele parece escancarar um sorriso de contentamento.
A cabeça do porco
O esquadrão se chamava Pinguim. A turma se encontrava em um famoso bar no centro de Porto União. O time já estava afamado na região. Não só pelas peleadas dentro das quatro linhas. Fora também. Sua turma era boa de bola e de gole. Todos amigos de paletas, partilhavam alegrias e sacanagens, às muitas.
A excursão da hora seria para o meio Oeste catarinense, em Ibicaré. O busão, como sempre, apinhado. Sábado partiriam. Viagem de ida e volta, de noite. De dia, por lá, peleja e festanças.
Mais um triunfo, de goleada. Pós jogo, final da tarde e já boca da noite, naqueles cantos de Ibicaré, um torneio de truco era gritado. Mais um leitão no rolete fora assado para o jantar. Encheram a pança. O álcool dominava as cabeças. Alguém queria comer o miolo da cabeça do duroque. Ela tinha sumido. Deu sururu, mas ficou o dito pelo não contado. Dez da noite, hora de se despedir. Entre abraços e mais abraços de despedidas, a turma se acomodou no busão e, boas de volta.
Batuques e cantorias no retorno. Dentro da condução apareceu a cabeça do leitão. Fora feito uma sacanagem. Tinham roubado e colocado dentro da bolsa do arqueiro. Sujou de banha e graxa todos os seus apetrechos. Ele ficou possesso. Quem foi, quem foi? – Gritava e gritava, parecendo estar com o tinhoso no corpo. O motorista encostou o ônibus na beirada da rodovia, por azar, perto de um puteiro. O guarda-metas surrupiou as chaves do ônibus. Só devolvo se aparecer quem me fez a sacanagem, dizia aos brados. Gritos e mais gritos. Ninguém assumia a culpa. O ônibus palanqueado na costa da estrada. O goleiro pulou do busão, deu dois tiros para riba e se mandou. Foi para a casa das “damas da noite”. Mostrando o 22 bradava: – só fossem lá apanhar as chaves se aparecesse o autor.
O dia amanhecia, segunda-feira, todos dormindo nos bancos, menos dois, o Manchão e o Rolha, os autores da façanha. Foram os dois que tinham roubado a cabeça do porco e colocado na bolsa do golquíper. Se cagando de medo, eles tinham jurado segredo, cerraram os beiços.
O clima era de revolta quando o goleiro voltou da bocada. Ninguém ousou criticá-lo, afinal! Ele estava berrado. Cansado da furrupa, o guarda-metas entregou as chaves para o motorista. Com o trabalho da manhã perdido, lá pela uma da tarde deram o ar da graça na sua cidade. O acontecido ganhou asas, foi o comentário por semanas, mas aos poucos foi ficando no esquecimento, até ninguém mais se interessar em descobrir. Mas, tinha um quê! Quem fora o autor da sacanagem?
Por meio século seguiu a vida. Muitos daquele esquadrão que nem mais existe partiram para o outro lado da rua da existência. Os que ainda estão por aqui, ligados pela forte amizade, todo final do ano se reúnem para uma confraternização. Vem gente de todo canto deste país continente.
Alegres e com alguns goles a mais, muitas histórias são lembradas. E, a história da cabeça do porco veio a lume. Um vivente lembrou, e tentando pôr para fora aquele segredo, se livrar daquilo que ainda nos dias atuais o incomodava, com os olhos marejados, muito emocionado, confessou que foi um dos autores da sacanagem. Só contaria agora porque o coautor e o goleiro já foram embora há tempos.
Pedindo que o perdoassem pelo ato cometido, Rolha, em detalhes contou que ele e Manchão tinham roubado a cabeça do leitão e escondido na mala do goleiro. Rolha também contou que ele e o Manchão deram uma gorja para o assador para que ele não contasse para ninguém. Rolha disse mais, que o juramento entre ele e o Manchão, de boca cerrada, fora cumprido em vida. Completou, que agora, se sentia livre de um peso.