NACO DE PROSA
A Noite Mágica
As pequenas luzes sobre a lagoa pareciam vaga-lumes dançando com o vento. Pequenos barcos se aglomeravam ao longo do píer. Eu sempre me senti privilegiada por ter aquele lago como meu quintal, bastava abrir a janela, e lá estava o imenso lago à minha frente. O céu estava estrelado, não havia nuvens para tirar aquele brilho, e a lua estava tão próxima, que por vezes pensei ser possível tocá-la. Muita gente estava ali, era uma noite mágica… véspera de Natal. O Menino Jesus chegaria em um barco maior, para ser colocado na manjedoura, na praça central. Todos estavam ansiosos, confesso que eu também, era uma data linda, um evento regado com amor e paz.
As pessoas estavam felizes, o clima de Natal, deixava os olhos mais brilhantes, a generosidade exposta e o calor nos abraços era mais forte. Na praça, para onde estava indo o menino Jesus, uma grande mesa estava pronta com vários alimentos, todos iriam se reunir para comemorar a chegada no nosso Salvador.
Estava distraída, olhando a imensidão do lago à espera do barco maior, quando em minha porta alguém bateu.
Fui até ela, sem perguntar quem era, o vilarejo em que eu morava, todos se conheciam, não havia perigo.
Um menino sorriu e estendeu seu pequeno braço, me oferecendo uma rosa. Percebi que a flor estava um pouco murcha. Ele olhou para o chão, parecia envergonhado.
Desculpa, estou há muito tempo com essa rosa na mão, o dia estava quente, e não consegui água para ela. Respondi a ele que não fazia mal, e que era uma linda flor. Fui à cozinha, enchi um copo com água e a coloquei dentro.
-Logo, ela revigora, e ficará linda! Mas, não sei o seu nome.
-Bernardo, senhora.
-Olá, Bernardo. Muito obrigada pela rosa, como posso retribuir?
Não precisa, senhora, ele pediu para eu entregar-lhe essa rosa antes da meia noite, corri mais que pude, e consegui!
-Ele? Quem?
Ele senhora, ele garantiu que a senhora iria saber. Disse que sempre foi assim, para seu Natal ficar com cheiro bom, uma rosa em sua mão. Naquele momento, meu estômago congelou. Uma sensação de passado com saudade entrou em meu coração. Havia me dado conta de que eu também não conhecia aquele menino.
-Bernardo, como você chegou aqui, como você me conhece?
-Ele me deu as coordenadas, não foi difícil. Mas agora preciso voltar, estão me esperando.
-Espere! Entre, coma alguma coisa.
-Não se preocupe, senhora. Vou estar bem e a senhora também.
O menino desapareceu em meio às pessoas que ali estavam. Lembro-me de fechar a porta, a sensação ainda embrulhava meu estômago. Busquei a rosa, e me surpreendi por encontrar ela tão vermelha, altiva no copo que eu a havia colocado.
Aproximei-me percebi o aroma inebriante que ela exalava. Aquele perfume que me levava para longe dali, para um passado tão distante, que não fazia nenhum sentido tudo aquilo.
Voltei para a janela, estava quase na hora do menino Jesus chegar.
Todos estavam a postos com seus celulares e pequenas lanternas para iluminar o caminho.
Batidas na porta novamente me chamaram.
Pensei ser o pequeno Bernardo, talvez ele pensara melhor e aceitou comer alguma coisa.
Mas era uma senhora, com uma pequena cesta na mão, e um lindo sorriso.
-Boa noite, menina!
-Olá, senhora. Como posso ajudar?
-Eu poderia ver o Menino Jesus chegar, pela sua janela. Aqui fora está muito cheio, e a sua vista é privilegiada.
-Claro que pode, entre, vamos lá! Está quase na hora.
Ela entrou, colocou sua cesta no chão perto da porta, e se debruçou na janela ao meu lado.
-Chamo-me Ana, obrigada pela gentileza.
-Prazer Ana! A senhora é sempre bem-vinda aqui.
Sabe, há muitos anos que ensaio vir aqui e acompanhar esse momento tão lindo, mas sempre estou trabalhando, mas hoje decidi que ia parar para ver o nosso Salvador chegando.
-Que bom que a senhora conseguiu a tempo. E a senhora trabalha com o quê?
-Vendo rosas, as mais lindas, confesso.
-Rosas?
-Sim. Como aquela que você tem no copo sobre a pia. Inclusive, ela é uma das minhas. Eu a vendi.
-Tem certeza? As rosas são bem parecidas.
-Ah, tenho, as minhas meninas são inconfundíveis.
-Um menino deixou ela comigo, há pouco.
-Sim, meu neto, Bernardo. Ele me ajuda na entrega. Eu fico na ponta norte, às vezes, não consigo chegar a tempo. E essa era uma entrega especial, e tinha horário.
-A senhora sabe quem a comprou?
-Sim, lembro bem, um senhor, era alto, bem vestido, barba feita, um perfume muito bom. Foi muito educado e generoso ao pagar.
-E ele disse mais alguma coisa?
-Apenas que era para seu Natal ficar com um bom aroma.
-Entendi… olha! Lá vem Ele!
Vários fogos subiam no céu, deixando tudo mais colorido. Estávamos em festa, o menino Jesus chegou. O navio atracou, e o levaram em procissão até a manjedoura na praça.
-A senhora vem?
Não, minha filha, preciso voltar, minha família está me esperando para a ceia, mas estou muito feliz e com o coração preenchido por este momento tão lindo.
-Que bom que o seu Natal começou bem, e eu pude participar um pouco dele. Sim, que bom!
Acompanhei a senhora até a porta, antes de ir ela me deu um abraço e disse: – Não deixe nunca o aroma evaporar.
E saiu pelas ruelas da vila, carregando sua pequena cesta.
Terminei de me arrumar, para ir à praça. Estava um pouco frio, decidi levar um casaco. Quando o tirei do armário, uma pequena foto veio junto com ele, e caiu no chão. Atrás, estava escrito: – Lembre-se sempre do aroma que este dia traz para a sua vida. 1984.
Ao virar a foto, meu pai, em meio a sua plantação de rosas, eu no colo da minha mãe, e ao lado meu irmão.
Aquela foto era a imagem de uma vida simples e feliz, vida que fora arrancada de mim há vinte anos.
Os três pilares da minha vida se foram, em um pequeno barco que, por uma falha mecânica, sumiu entre as ondas do mar.
Eu estava com minha avó, e não sabia por que eu estava passando por tudo aquilo.
Porém, naquela noite, de uma forma mágica, não foi apenas o menino Jesus que viera em um barco. A chama se acendeu novamente, e ali, tive a certeza, de que a magia do amor que estava lá em cima, bateu em minha porta, naquela noite de Natal para me garantir que, enquanto houvesse o aroma das rosas em minha vida, em minhas lembranças, eles estariam comigo, e tudo se renovaria dentro de mim. Fui até a janela, olhei para o céu, um último foguete iluminou a nossa vila. Sorrindo, desejei Feliz Natal. Com certeza, eles estavam me ouvindo. Coloquei o casaco, fechei a janela, e deixei a foto ao lado do copo com a rosa.
Era o momento certo de celebrar o nascimento do menino Jesus e o meu renascimento.
Feliz Natal!
Veja Também
NACO DE PROSA
A crônica da despedida
Sempre que escrevo a crônica para o jornal Caiçara, aguardo um pouco para analisar o assunto, e a inspiração vem, as palavras escorregam e logo surge um belo texto. Porém, hoje, meus queridos leitores, tenho uma novidade! Hoje é dia de despedida para o jornal “Caiçara”, então a tristeza veio antes que a inspiração. É que esta é minha última crônica para a minha coluna, “Naco de Prosa”, então será a minha despedida deste jornal, que acolheu minha escrita por muitos anos. “Naco de Prosa” me proporcionou a oportunidade de dialogar com diferentes perspectivas, de aprofundar meus conhecimentos e de me conectar com pessoas que compartilham minhas paixões.
Caiçara há 72 anos, visitando seus leitores, hoje se despede, pois, o jornal impresso ficou impossível de seguir em frente, aquele que dava alegria aos que ainda gostam de ler folheando as folhas impressas. Vieram-me à mente as lembranças de muitas conversas com a grande amiga, Lulu, e o adeus se prolonga.
É muito difícil dizer adeus, mesmo sendo necessário, como é agora, mas é a derradeira crônica, porém, guardo os momentos e as histórias que aqui se entranharam em meu espírito, pois invadi muitos lares, muitas histórias familiares, as quais fizeram parte da minha vida, ao registrar na minha coluna.
A saudade vai apertar aos sábados, por não ter mais o jornal “Caiçara”, saudade de abrir e procurar pelo meu texto. Há um mundo de sentimentos, e não existem palavras para expressar tudo, e ainda fazem minha alma chorar. A vida é feita de ciclos e, com certeza, todos me ensinaram algo. Foi uma experiência incrível, que me fez refletir várias vezes sobre a importância da escrita, e uma emoção não tão tranquila ao sentir, que não mais vou escrever as minhas queridas crônicas para tantos amigos e leitores, será um tempo difícil, porque estive conversando com vocês durante quase todas as semanas, sobre diversos assuntos, e como aprendi nesses bons tempos, assim como toquei o coração de muitos leitores.
Infelizmente é um tempo que se encerra. Talvez você esteja se perguntando: “Mas por quê? O que houve? Pois é, queridos amigos, são tempos difíceis, falo isso para que você consiga entender um pouco da situação e porque você é a razão de eu estar aqui me despedindo e me explicando. Vocês merecem todo o meu carinho e apreço.
Agradeço por me acompanhar até aqui, foi extremamente importante poder escrever para vocês.
Agradeço pelo respeito ao meu espaço, pelas histórias lidas e comentadas, pela procura de mais crônicas semelhantes a que liam todas as semanas.
Agradeço em especial aos diretores do jornal pela oportunidade, aos colegas colunistas, que dividiram o dia a dia, o trabalho e a vida para também escreverem seus artigos neste jornal.
É com um misto de emoções que me despeço desta coluna.
Gratidão a todos, por tudo!
Com muita fé, gratidão e alegria, que encerro esse momento.
NACO DE PROSA
Naqueles trilhos faltava ela
Ouço ao longe o apito do trem. Na minha adolescência o apito significava muitas coisas, a alegria da chegada de cargas, pessoas, correspondências, novidades de outros lugares.
Eu resido próximo à linha do trem, por isso, posso afirmar, que só quem ouviu vai entender esta onomatopeia: piui! piui!
O apito servia como um marcador de tempo ou até instrumento de aviso à população sobre alguma calamidade; como relógio, as pessoas sabiam de onde vinha o apito, e calculavam a hora do dia, e quando o último sibilar acontecia, todos sabiam que era tempo de silenciar e repousar. Interessante lembrar o poema de Manuel Bandeira, “ Trem de ferro”, o qual usei com um grupo de crianças para fazermos o barulho das rodas nos trilhos de ferro. A escolha das palavras e repetição do verso “café com pão”, “café com pão”, a sonoridade das palavras do verso, produziam uma sequência de sons que nos reportam ao barulho proveniente do deslocamento de uma locomotiva sobre os trilhos. O guarda-chaves manobrava os desvios, entroncamentos dos trilhos, trabalho importante de grande responsabilidade, e quando o trem se aproximava de um trilho com outro destino, a máquina de ferro simplesmente deslizava feito serpente, à outra linha. Um passado que voltou.
É ela voltou aos trilhos, ela que veio trazer alegria às famílias, principalmente às crianças. Pude observar o embarque, na estação, observei de perto cada rostinho, cada gesto, cada sorriso, todos mostravam sua felicidade de um momento de glória, viajar de trem.
Eu costumo dizer por aí, que tenho uma das vistas mais privilegiadas do mundo.
Não moro em um palácio nem no alto de uma colina, mas porque, daqui, exatamente onde estou, posso ver a fumaça da “Máquina 310” passando, e com ela, meus pensamentos seguem e volto a um tempo do qual, eu não queria ter saído.
Mas como não somos os donos do tempo, apenas aceitamos e seguimos, entre suspiros e algumas lágrimas que cismam em molhar nosso rosto.
Lembro do tempo em que meu pai se despedia, ainda na cozinha em que minha mãe preparava o café, para ir à estação e pegar o trem para o trabalho.
Eu o veria novamente, com muita sorte, daqui a uns dois ou três dias.
Quando eu tinha uns cinco anos, meus olhos mal conseguiam ultrapassar a altura da janela, eu ouvia de longe seu apito, e corria para ver se, de repente, meu pai não estaria do lado de fora, acenando para mim.
E os anos se passaram, meus pais hoje não estão mais aqui, o café já está frio sobre a mesa. A janela fechada. Cortinas cerradas.
Foi quando num salto achei que, enganada pelos meus cansados ouvidos, ele havia voltado. A cozinha foi invadida pelo cheiro do café forte, sempre três colheres bem cheias, minha mãe repetia em voz alta. Meu pai saia do quarto, afivelando o cinto, cabelos alinhados e o abraço mais terno e quente que havia.
Mas o tempo não havia voltado, não da forma que eu imaginei. Mas, sim, o tempo atual, que trouxe de volta uma parte da minha infância, a Locomotiva 310, nossa querida Maria Fumaça. Que fazia tremer os trilhos e nos afastava para longe devido ao perigo que havia quando ela passava apitando.
E quantas lembranças boas! Hoje, de volta aos trilhos, ela traz consigo um passado bom, um passado perdido no tempo, há muito tempo. E quando, após anos, volto a entrar em um dos seus vagões, segurando na barra da entrada para conseguir impulso, vejo aquela pequena menina, que aos pulinhos ia encontrar seu papai na estação. O pai abaixava, deixando a cesta de alimentos para me dar o abraço que eu esperava.
Seu apito entra direto em minha alma, e junto ao compasso do meu coração, traz novamente à minha rotina, a sinfonia de um lindo e distante passado, aquele que carrego em meus sonhos de menina.
NACO DE PROSA
Fatos que nos surpreendem
Às vezes acontecem episódios, que achamos só coincidência, pura obra do acaso, porém, não é bem assim.
Sempre gostei de estar entre livros, poemas, bibliotecas, museus e sebos. Há um bom tempo pediram para eu escrever um poema para homenagear minha cidade, União da Vitória. Este poema foi apresentado em alguns eventos, quando eu o declamei. Meses depois soube que a presidente da Avipaf, em Curitiba o colocou em exposição junto a outros poemas, na biblioteca do Paraná, Curitiba. Eu estava na cidade e aproveitei para visitar a exposição, fui com minha filha.
Fiquei deslumbrada com tantos poemas maravilhosos. Fixei no meu. De repente, se aproximou um senhor, foi lendo vagarosamente cada um. De repente, ele falou ao celular com um amigo e disse: – Fulano, você não vai acreditar, estou na frente de uma exposição de poemas e, um é sobre União da Vitória. Ele estava empolgado. Olhei para minha filha com espanto, eu parecia uma poeta famosa.
Logo que ele desligou o celular, olhou para nós e falou:
Estou muito feliz, pois nasci em União da Vitória, morei por muitos anos lá, sinto muitas saudades, e agora venho aqui e encontro esta pérola.
Minha filha não conseguiu ficar calada e disse: -Foi minha mãe que escreveu este poema.
Ele arregalou os olhos, percebi que estava muito emocionado.
Quis conversar um pouco mais, acabamos trocando número de telefone, até hoje mantemos contato.
No entanto, não era a história que eu planejava escrever.
Curioso é que os fatos são similares.
Na semana que passou viajei a Curitiba, como gosto muito de livros procurei um lugar para quem sabe comprar algum título. Passei em frente a uma vitrine com muitos livros expostos, li na placa que era um Sebo de livros. Observei com calma os títulos que se mostravam para mim. Confesso que um era melhor que o outro. Quando resolvi entrar na loja, percebi pelo reflexo que atrás de mim, havia um senhor, que estava com o olhar fixo em um determinado livro.
Minha curiosidade aumentou, pois, o livro me chamara a atenção também, porém devido ao reflexo eu não conseguia ler o título. Olhei o senhor, que agora havia se aproximado da vitrine, quis perguntar a ele, mas desisti, deixei-o quieto, pois estava extasiado com o que via.
Era com certeza, um morador de rua, estava com roupas surradas e uma sacola, e não desviava o olhar daquele livro.
Resolvi indagá-lo.
- O senhor é daqui?
-Percebi que gosta de ler, pelo seu interesse. O livro, que o senhor gostou, eu também achei muito interessante a julgar pela capa.
Eu me apresentei, falei de onde eu era, o que fazia ali, falei também o meu gosto pela literatura. Ele estendeu a mão, em um aperto firme, e também se apresentou.
Disse que há muito tempo morava nas ruas e, que quando pode consegue com alguém um livro para ler, falava muito bem, possuía um excelente vocabulário.
Perguntei-lhe de onde vinha o gosto pela leitura. Ele baixou os olhos e percebi que chorava, eu fiquei sem saber como agir, fiquei muito assustada.
Ele se recuperou rápido e pediu desculpas pelo acontecido. E sem demora me contou que em um passado recente fora um escritor, e conseguia viver da venda dos livros, mas sua vida sofrera uma mudança muito grande, ele havia conquistado um nome respeitável, conseguiu abrir uma editora, onde ajudava os iniciantes a publicar seu livro. Porém, devido a uma injustiça, a qual tentou por muito tempo provar a verdade à sociedade, não houve tempo, ficou na miséria, sua casa, carros, enfim perdeu tudo, e ficou com muitas dívidas. Sua família envergonhada o deixou sozinho, foi embora do Brasil. Disse-me que ainda tenta reaver alguma coisa, mas sem condições. Os amigos se foram.
Contou-me que já havia morado em vários lugares, mas sempre por pouco tempo. Hoje ele sente que está conformado com o que lhe aconteceu, e cansado de lutar sem esperança. Olhou seu livro de longe e chorou copiosamente.
Eu não sabia como ajudar.
Perguntei-lhe se estava com fome ou se precisava de algum dinheiro, me respondeu que não precisava de nada.
Meu coração estava triste, pensei em uma solução.
Entrei na loja e comprei o livro, senti o peso daquela obra.
Voltei com uma caneta nas mãos e pedi seu autógrafo, ele muito surpreso falou:
-Qual é o seu nome, querida?
Eu respondi com engasgo na garganta:
-Marli.
