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ALINHAVAR PALAVRAS

DEIXAR-SE TOCAR PELA FILOSOFIA

Deixar-se tocar pela filosofia é um caminho sem volta. Companheira de vida, de viagens e de vertigens, senhora experiente flerta com a verdade e tem na dúvida seu maior encantamento. Pensa o finito e o infinito. A vida e a morte. Questiona o tempo e o inventa. Dança com o mistério e morre nas certezas. Como sábia anciã por vezes parece caduca e por vezes tem poder de vidência, anunciando o que nem todos querem ouvir, pois seu chamado é para reparar, rever, desobedecer e reaprender a viver. Sim! É da vida que se ocupa a filosofia! Alerta sobre a efemeridade do humano diante do mistério do mundo.

E, como num jogo de contrários, há momentos que se apresenta como uma criança embebida na sede da curiosidade, no espanto e na esperança diante do humano. Na ambiguidade entre a anciã e a criança, entre maturidade e incertezas, tradição e novidade, nos inebriamos com seus dizeres e fazeres que esvaziam-se de sentidos de tempos em tempos, nos abandonando a própria sorte, deixando-nos à deriva.

Com esta companheira, a filosofia, é possível visitar o mais íntimo de nós e nos lançarmos ao outro em seu mistério. Filosofar, como viajar, educa os sentidos. Se ver é permeado por certa passividade, ato involuntário, um deslizamento desatento sobre as coisas e o mundo, filosofar nos convida ao olhar ativo, que indaga, investiga e se comove. Como em um caleidoscópio que a cada ação das mãos a girar faz o inédito surgir: filosofar é criar!

Estar em companhia sábia, hora da anciã ora da criança, sem os cenários das viagens, seria a clausura em-si-mesmo. Filosofar é um estar no mundo, senti-lo, pensá-lo e em tempos de estiagem arar a terra em ato de preparo e cultivo ao que poderá surgir.

Quem tem em sua companhia a filosofia tem os pés na lama do território que assombra. E neste sentido lembramos dos viajantes do “velho mundo” que aos chegarem por estas terras “tupiniquins” em 1500 se assombraram e trouxeram consigo, também, filosofias. Desde então nos parece ambígua a relação da cultura brasileira com o filosofar. Talvez isso se deva ao que, em 1925, bem sintetizou, o modernista Oswald de Andrade, no poema “Erro de Português”:

Quando o português chegou

Debaixo duma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português

Vestiu literalmente, incidindo, quase sempre com violência, sobre corpos e culturas, vestindo suas visões de mundo, portanto, suas filosofias. Entre estas, sem dúvida a filosofia aristotélica-tomista da Companhia de Jesus teve forte impacto. Depois na república de marechais inauguramos uma tradição antipovo marcada pelo positivismo alienante e autoritário que talvez explique em certa medida porque a filosofia de Paulo Freire segue exilada e sob ataques. Por estas terras mesmo ideais iluministas e suas máximas liberais de igualdade, liberdade e fraternidade foram reprimidos em conjurações, revoltas e manifestações ao longo dos séculos. Questões que ajudam a compreender uma cultura onde direitos são confundidos com privilégios e onde o público é sequestrado a serviço de interesses privados.

O encontro de culturas produziu marcas tanto nos europeus como entre os povos originários. Povos que seguem resistindo e nós seguimos pouco aprendendo com eles. O que ocorreu diante do encontro com o diferente foi assombro! Se o espanto, o assombro, é terreno fértil ao filosofar a resposta do colonizador não foi despir-se de suas crenças (doxas). O que fazem é lançar uma terrível sentença: “imita-me ou devoro-te!”  Muitos foram devorados, outros tantos tornam-se cópias de uma identidade em crise e outros devoram e recriam algo novo num gesto antropofágico, como desejou Oswald.

Na roda viva o humano segue assombrando e diante do chamado à intolerância, à violência, à irracionalidade e ao fanatismo a filosofia resiste pois filosofia está para a democracia. Tema destacado na “Declaração de Paris para a Filosofia”, das jornadas internacionais “Filosofia e Democracia no Mundo” (1995), eis um trecho:

“Constatamos que os problemas de que trata a filosofia são os da vida e da existência dos homens considerados universalmente. […] Reafirmamos que a educação filosófica, formando espíritos livres e reflexivos – capazes de resistir às diversas formas de propaganda, de fanatismo, de exclusão e de intolerância – contribui para a paz e prepara cada um a assumir suas responsabilidades face às grandes interrogações contemporâneas, notadamente no domínio da ética. Julgamos que o desenvolvimento da reflexão filosófica, no ensino e na vida cultural, contribui de maneira importante para a formação de cidadãos, no exercício de sua capacidade de julgamento, elemento fundamental de toda democracia. […] A atividade filosófica, como prática livre da reflexão, não pode considerar alguma verdade como definitivamente alcançada, e incita a respeitar as convicções de cada um; mas ela não deve, em nenhum caso, sob pena de negar-se a si mesma, aceitar doutrinas que neguem a liberdade de outrem, injuriando a dignidade humana e engendrando a barbárie.”

17 de maio de 2019 – Gisele Moura Schnorr

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In memoriam

Há momentos em que a voz embarga e a escrita não toma forma. Não tenho nada a dizer?

Silencio. Me ouço. E esse tempo é meu. Só meu, não é do mundo ou dos que me rodeiam. Recolher-se. Calar-se por algum tempo em meio as verborragias cotidianas, não por omissão ou emudecimento, mas por um estar em mim. Trata-se de tempo interior, do sentir, ouvir-se, perceber-se e, porque não, de busca de palavras.

Silenciar-se em meio a ruídos. Violentos ruídos diante dos quais não há justificativas ou explicações racionais, pois como dizia Eduardo Galeano, em “A infância como perigo”[1], “os fatos zombam dos direitos”.

Os fatos zombam do direito de existir e diante dos fatos, muitas vezes, faltam palavras, mas não emudeço. Em meio ao silêncio ou aos ruídos há comunicados, afinal a linguagem nos constitui.

O que diz seu, nosso, silêncio diante dos fatos?

O silêncio é linguagem e contém múltiplos significados. Diante da pergunta “Não tenho nada a dizer?” encontro, não uma resposta, talvez, o problema: A Cultura do Silêncio!

O ruído em questão foi de bala! Bala de revolver! Bala de fuzil!

Era sábado à tarde, 14 de setembro, convidei uma amiga e fomos tomar um café. Era mais um dia, um final de tarde em boa companhia. Ao chegar em casa recebo a notícia de que na Estação Ferroviária, centro cultural e histórico da cidade, onde ocorria uma festa, uma mulher teria sido assassinada. Enquanto tomávamos um café, a poucos metros deste local, onde conversávamos, também, sobre mulheres, relações de gênero, violência contra as mulheres, mais uma era assassinada.  Mais uma!

Rosane Aparecida Guis, 31 anos, mãe de três crianças, trabalhava na festa quando foi assassinada a tiros pelo seu ex-marido que em seguida se suicidou.

Rosane Aparecida Guis! 31 anos! Mãe! Mulher! Filha! Irmã! Trabalhadora do campo! Após viver anos de um relacionamento abusivo, violento, morava com seus pais. Ela e seus filhos tinham “medida protetiva” contra o ex-marido após inúmeras ameaças e agressões.

Seu assassino era o pai de seus filhos, foi seu companheiro, seu esposo, com quem dividiu boa parte de sua juventude e provavelmente de seus sonhos. O pai de seus filhos, um “cidadão comum”, para alguns “cidadãos de bem”, que provavelmente construiu seus ideais de masculinidade tendo por princípio a noção de que mulheres são propriedade, devendo ser submissas. Não se trata de um louco ou doente, mas de um homem abusivo, violento, machista. Produto de uma sociedade abusiva, violenta e machista.

A exemplo da naturalização desta construção social: um feminicídio debaixo de nosso nariz! E a festa segue!? A festa seguiu… E assim segue o baile… mais uma! Mais uma! Só mais um número… Se isso não te choca. Se não te emudece. Olhe-se no espelho. Repare no que vê. Se do outro lado há um ser humano e de que tipo.

Rosane morreu por ser mulher ao estar tentando colocar fim a um longo ciclo de violência em que ela e seus filhos viviam. “Os fatos zombam dos direitos!”.

Rosane tinha o direito de viver! Ela lutava por isso! Buscou ajuda! As instituições que deveriam protegê-la falharam. Enquanto o machismo seguir fazendo vítimas instituições de todas as áreas (saúde, educação, segurança pública, cultura) deveriam assegurar direitos, restringir ao máximo os danos físicos e emocionais da violência. Mas os fatos zombam dos direitos! Cadê o direito à vida das mulheres?

O silêncio diante de fatos como este, assim como do assassinato da menina Ágatha Félix, de 8 anos, morta com tiros de fuzil no Rio de Janeiro, dia 20, não é de introspecção ou autoconhecimento. Este silêncio é constituído de “nós” na garganta diante do que temos nos tornado como sociedade. Nos remete a cultura do silêncio que está nas origens do povo brasileiro e sua “quietude” diante de sua história.

Paulo Freire, no livro “Educação como Prática da Liberdade”[2], dedica-se ao tema da cultura do silêncio ao abordar a inexperiência democrática do povo brasileiro e destaca que a tradição colonial, autoritária, escravagista gestou um país que não experimentou um senso de comunidade, de participação coletiva na busca de solução de problemas comuns, fato que leva a outros problemas como o assistencialismo, paternalismo e populismo. Trata-se de um país com um povo assujeitado, negado, submisso.

A experiência comunitária, de busca de solução coletiva para os problemas, da responsabilidade de todos e todas pelas mazelas que vivemos, é um dos elementos fundamentais na construção de sujeitos democráticos, na transformação de ações em sabedoria democrática. Mas não somos sábios…

A cultura do silêncio amordaça, tolhe a voz, distancia as pessoas as fechando na incomunicabilidade. A força da cultura do silêncio se expressa quando o Estado se omite da promoção do debate público e da promoção de políticas públicas que assegurem direitos.

Quando vozes são silenciadas para que outras sejam ouvidas a cultura do silêncio se fortalece. Quando a festa segue após um feminicídio, não interessa quais sejam as justificativas, reafirma-se a cultura do silêncio que naturaliza a violência contra mulheres e crianças. O patriarcado segue em festa e os fatos seguem zombando de direitos!

Se uma criança é assassinada em nome de uma política de segurança pública não só os fatos zombam do direito, está tudo errado! Não há mais direitos! Falhamos como humanidade! Mas como diz o poeta[3]: Faz escuro mas eu canto…

Posso me silenciar, mas não me calo.

In Memoriam de Rosanas, Ágathas, Andriellys, Renatas, Marias,Lindamires, Angélicas, Tatianas, Julianas, Jéssicas e todas que tombaram vítimas do machismo e da cultura do silêncio.

[1] Revista Atenção! – agosto/1996.

[2]FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 70-71.

[3] Thiago de Mello

27 de setembro de 2019 – Gisele Moura Schnorr

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A banalidade do mal

            Certa vez um amigo ao escrever um desabafo diante das já comuns situações de injustiça: “A dor da gente não sai no jornal.” Suas palavras, como seus gestos de profunda crença na capacidade humana de reinventar-se, ainda hoje soam em mim. Os jornais diários sangram com as mais terríveis notícias de assassinatos, apologias à violência; notícias de impunidade, da fome que volta assolar o país,da retirada de direitos, acrescido pela banalização dos fatos por governantes eleitos. Diante das distopias seguimos alguns anestesiados, indiferentes, outros desesperançados e há ainda os que seguem de acordo com a ordem das coisas.

Difícil compreender como no “jogo democrático”, desde processos eleitorais como da chamada liberdade de expressão, temos reafirmado a tradição autoritária e certo encantamento por figuras populistas, líderes “salvadores da pátria”, “mitos” que marcam nossa história. Parecemos distraídos com nosso passado e iludidos com um futuro que obviamente será assombroso, basta observarmos atentamente o presente.

Talvez se fossemos mais atentos a arte faríamos política de outro jeito. Com alguma pitadinha de justiça social! Relendo “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus, diário escrito na década de cinquenta do século XX, por esta mulher negra, favelada e sábia temos:

Mas eu já observei os nossos políticos. Para observá-los fui na Assembleia. A sucursal do Purgatório, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no palácio do Governo. Foi lá que eu vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as tragédias que os políticos representam em relação ao povo.”[1]

Carolina é um convite a pensar sobre o aprendizado do pensar não deixando-se apenas levar pelos fatos e circunstâncias. Nos indaga acerca da justa indignação diante do estado de coisas que há num mundo adoecido. Somo a esta reflexão outra mulher. A filósofa alemã, de origem judaica, Hannah Arendt que trabalhando como correspondente pela revista The New Yorker cobriu as sessões do julgamento do oficial Adolf  Eichmann, tornadas públicas pelo governo israelense em 1963. Eichmann foi um carrasco, trabalhou como oficial da Gestapo nazista e foi responsabilizado pela logística de extermínio de milhões de pessoas. Foi capturado na Argentina, julgado e condenado a morte em Jerusalém no ano de 1961.

Ao analisar o comportamento do acusado, que também teve a oportunidade de entrevistar, Arendt o identificou como um burocrata, um sujeito medíocre, que sem pensar nas consequências de seus atos agia segundo o que acreditava ser seu dever, sem questionamentos para o bem ou para o mal, pois seu foco era sua carreira profissional e, enquanto oficial, era um funcionário zeloso, cumpridor de ordens. Diante dos horrores do totalitarismo que atingiu o século XX a filósofa mergulhou numa vasta produção teórica. Em suas reflexões questiona se o hábito de analisar qualquer acontecimento, ponderar, poderia evitar o mal. Será que um dos atributos da banalização do mal, da naturalização de toda forma de mal, estaria no não exercício de pensar?

Uma das facetas do não pensar está na massificação com diferentes estratégias, como os meios de comunicação e a proliferação de informações nem sempre verdadeiras, tais como Fake News nos tempos atuais; a alienação religiosa que promove intolerância e desinformação; a negação de dissensos, da diferença e do diálogo. Até que ponto estamos sustentando comportamentos deploráveis simplesmente porque não pensamos nas consequências? Arendt demonstrou como pessoas que se consideram de bem, em conjunturas históricas adversas são levados a apoiarem ideias equivocadas e desumanas. O mal ao tornar-se corriqueiro acaba por ser incorporado como trivial. A história ensina que discursos de ódio sempre antecedem ações de ódio. As palavras ditas tem consequências.

A banalização do mal à brasileira é tão cotidiano que se reproduziu como praga. Um país inaugurado do estupro das índias e que segue negando o direitos dos povos indígenas existirem; com mais de cinco de séculos de exploração e destruição dos recursos naturais; que escravizou, matou e gestou formas singulares de racismo; país em que mulheres negras escravizadas foram sistematicamente estupradas e segue naturalizando a cultura do estupro; onde torturadores nunca foram punidos por seus crimes contra humanidade; país do genocídio da juventude negra; país que mata mulheres por serem mulheres; país que sistematicamente nega o direito à educação pública, assim como outros direitos fundamentais. Sim! Somos a encarnação da banalização do mal, ainda que não somente isso. Precisamos encarar os fatos, como na música de Milton Nascimento, Notícias do meu Brasil: “Ficar de frente para o mar e de costas pro Brasil não vai fazer deste lugar um bom país.”

O Brasil assombra! O Brasil somos nós! A caixa de pandora com todos os males foi aberta. Que a esperança não tenha escapado…

Paulo Freire, mundialmente reconhecido como um dos maiores educadores do século XX e demonizado por defensores da banalização do mal, dizia que não vivemos enclausurados numa dada condição existencial, não somos determinados a aceitar o que está dado como imutável e a esperança é uma necessidade ontológica, algo que nos coloca em movimento. Esperança que nos desafia ao exercício de desvelar as razões das injustiças, desvelar as mentiras e toda forma de opressão, pois “[…] a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo onde não é possível juntar forças indispensáveis ao embate recriador do mundo[2]”.Que não percamos o endereço da esperança e que pensemos sobre nossos hábitos de banalizar o mal!

[1]JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10ª ed. São Paulo:  Ática, 2014, p. 53.

[2] Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido, 1999, p. 10.

2 de agosto de 2019 – Gisele Moura Schnorr

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Filosofia indígena. Sim, temos!

Na coluna anterior escrevemos algumas linhas sobre “Deixar-se tocar pela Filosofia”. Como país colonizado, com forte reprodução de estrangeirismos de todo tipo, seguimos devotos do pensar com cabresto, voltado para modelos externos sejam europeus ou norte-americanos e de acréscimo uma tradição antidemocrática. Do ponto de vista da filosofia, que serve como reflexão para outras áreas de conhecimento, é ilustrativo que filosofamos ignorando nossa diversidade cultural e nossos problemas concretos. O Brasil é um território fértil para o filosofar e nosso filosofar precisa ser tocado por nossas gentes, nossas vidas, nossas dores. Filosofar é pensar o pensado de modo situado, desde nosso contexto, pensar questões humanas como o sentido da vida, questões éticas, estéticas, políticas, epistêmicas, etc.

Há muitas vozes ausentes em nosso modo de pensar e o Brasil perde com isso. Pensar se faz com o outro, como o diferente e nas diferenças. Pensar com é práxis de colaboração e reciprocidade que antropofagicamente nos tece outros, em outros modos de ser e estar no mundo. Quiçá melhores!

Nosso território é marcado por povos que a mais de 500 anos resistem ao extermínio, a destruição de suas casas: a natureza, a terra e são guardiões da biodiversidade[1]. Me refiro aos que erroneamente chamamos de índios. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, a população indígena gira em torno de 896,9 mil pessoas divididas em 305 etnias e falantes de 274 línguas. Cada etnia um povo, com especificidades e linguagens que expressam concepções de mundo.  A diversidade cultural brasileira representa múltiplas maneiras de comunicar-se, de nutrir-se, de fazer educação, de produzir, de se organizar social e comunitariamente, de produzir conhecimentos, de diferentes formas de dançar, de cantar, celebrar, de construir moradias, de curar enfermidades, de produzir alimentos, de filosofar e de reaprender a pensar e a ser.

A presença indígena na formação da sociedade brasileira é marcante e ainda hoje é comum nossas escolas, assim como em outros espaços, retratarem os povos indígenas de forma folclórica, com estereótipos e preconceitos. Conhecermos a nós mesmos passa pelo reconhecimento de que não há Brasil sem indígenas e de que cada brasileiro, cada brasileira tem sangue indígena, nas veias ou nas mãos.

Um bom começo para nos despirmos da mentalidade colonizada que nos constitui é conhecer. Sim conhecimento liberta! Quantos intelectuais indígenas você conhece? Sim, intelectuais! Reivindicamos o termo para se referir “aos filósofos da oralidade”, sábios, jovens e anciões[2], produtores de conhecimentos e de infinitas formas de tecer a vida. Pensadores e pensadoras que cada vez mais vem se ocupando, também, da escrita compartilhando conosco suas filosofias e suas lutas. Para citar alguns e algumas: Ailton Krenak, Daiara Tukano, Eliane Potiguara, Fernanda Kaingáng, Kaká Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Davi Kopenawa, Sonia Guajajara, Cacique Raoni, Sama Hani Kuî.

[1]Sobre preservação da biodiversidade e povos indígenas sugerimos: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/faq/tis-e-meio-ambiente
[2]Sobre este tema sugerimos o artigo: Intelectuais Indígenas, Interculturalidade e Educação de Maria Aparecida Bergamaschi, Revista Tellus, ano 14, n. 26, jan./jun. 2014.

Fernanda Kaingáng, por exemplo, foi aprimeira indígena a conquistar o título de mestra em direito no Brasil (Universidade de Brasília). Em uma entrevista de 10/05/2018 Fernanda nos lembra: “O Brasil é signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica, criada na ECO-92, [no Rio de Janeiro], e 20 anos depois o que temos? Biopirataria consentida pelo Estado. O açaí foi registrado? Não. Organizações Não Governamentais (ONGs) tiveram que fazer o Japão revogar o registro da patente, porque o governo brasileiro não fez nada. O “cupulate”, chocolate de cupuaçu, também foi registrado pelo Japão. Isso é omissão. Propõem um biodiesel e o que ele tem de “bio” é sangue. O etanol tem sangue indígena. A produção de cana de açúcar, quando é mecanizada, vai caindo. Então, para eles, é mais produtivo ter a mão de obra humana, que é escrava e feita em terras indígenas que deveriam estar demarcadas e não estão. A sociedade brasileira manteve os padrões coloniais de racismo, de inviabilização das “minorias”, de exclusão.”[3]

Davi Kopenawa Yanomami nascido em 1956 é escritor, xamã e líder político yanomami, no livro belíssimo “A queda do Céu”, diz: “O que fazem os brancos com tanto ouro? Por acaso, eles comem?“Não sou um ancião e ainda sei pouco. Entretanto, para que minhas palavras sejam ouvidas longe da floresta, fiz com que fossem desenhadas na língua dos brancos. Talvez assim eles afinal as entendam, e depois deles seus filhos, e mais tarde ainda, os filhos de seus filhos. Desse modo, suas ideias a nosso respeito deixarão de ser tão sombrias e distorcidas e talvez até percam a vontade de nos destruir” Davi Kopenawa (p. 76).  No capítulo “Paixão pela mercadoria” Davi Kopenawa   faz uma crítica ao fetichismo capitalista comparando a forma como os brancos despendem todas as suas energias para acumular cada vez mais coisas, enquanto, para os Yanomami, a única coisa que faz sentido é fazê-las circular. Entre eles, depois que alguém morre, considera-se que as coisas que sobram carregam em si traços do morto e, exatamente por isso, devem ser destruídas, para aplacar a saudade dos que ficaram.“No começo, a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. […] Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. […] Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido debaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grandes quantidades. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. […] Foi com essas palavras das mercadorias que os brancos se puseram a cortar as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios. (p. 407) “O valor de nossa floresta é muito alto e muito pesado. Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes. […] Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob as águas e os humanos têm um valor importante demais para todas as mercadorias e o dinheiro dos brancos. Nada é forte o bastante para poder restituir o valor da floresta doente.[4]

Daniel Munduruku, nascido em Belém, PA, filho do povo Indígena Munduruku é formado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia, doutor em Educação pela USP e pós-doutor em linguística pela UFSCAR. Seu livro Meu avô Apolinário foi escolhido pela Unesco para receber Menção honrosa no Prêmio Literatura para crianças e Jovens na questão da tolerância. Defende que a palavra “índio” remonta a preconceitos – por exemplo, a ideia de que o indígena é selvagem e um ser do passado – além de “esconder toda a diversidade dos povos indígenas”.  “[…] quando a gente comemora o Dia do Índio, estamos comemorando uma ficção.” Reflexo disso são celebrações da data feitas por escolas, com uma “figura com duas pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de triângulo”. “É uma ideia folclórica e preconceituosa.” Nos ensina que: “[…] Somos a continuação de um fio que nasceu há muito tempo atrás… vindo de outros lugares…iniciado por outras pessoas… completado, remendado, costurado e… continuado por nós. De forma mais simples poderíamos dizer que temos uma ancestralidade, um passado, uma tradição que precisa ser continuada, costurada, bricolada todo dia.” (MUNDURUKU, Daniel. Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória. São Paulo: Nobel, 2005, p. 24.).[5]

Num tempo histórico difícil em que no Brasil e no mundo nos deparamos quase impotentes com toda forma de atrocidades que revelam a força de um sistema global regido pela ganância, destruição dos ecossistemas e com permanente ameaças a vida, olhar para a diversidade humana, aprender com as diversas tradições de pensamento, reorientar estas tradições aprendendo com elas em busca de uma convivência mais amorosa entre todos os seres parece uma luz no fim do túnel. Que não deixemos para fazer isso tarde demais, já é passado muito tempo…

Como ensina a filosofia guarani, os caminhos que nos conduziram ao mal viver “são frequentemente revistos percorrendo uma história regressiva dos nossos erros e desvios – guerras, economias de mercado, capitalismo, ditaduras, consumismo, individualismo, empobrecimento – mas, somos de verdade conscientes de que estes caminhos não podem ser simplesmente ‘des-caminhados’, apagando as ingratas pegadas dos nossos ‘pecados’? A queixa saudosa somente não abre caminho para o futuro.” [6] Na filosofia do bem viver guarani é necessário revermos o modo de ser e estar no mundo (tekó) buscando a experiência concreta de tekó porã, ou seja, a boa maneira de ser e viver. Tekó Porã é interrelação, reciprocidade. Como diz Bartolomeu Meliá: “Os povos e nações indígenas da América são a memória de nosso futuro e, se não existissem, teria que inventá-los. Como todos nós que já estamos na hora de inventar-nos novamente.” 

3]Fonte:https://amazonia.org.br/2018/05/esquecimento-dos-povos-indigenas-e-proposital-diz-primeira-india-mestra-em-direito-no-brasil/
[4]Fonte: A Queda do Céu: Palavras de um xamã Yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert. São Paulo: Companhia da Letras, 2015.
[5] Ver também: http://danielmunduruku.blogspot.com/p/entrevistas.html
[6] Bartomeu Meliá: http://www.raiz.org.br/o-bem-viver-guarani-teko-pora

28 de junho de 2019 – Gisele Moura Schnorr

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